Picos monoclonais referem-se a anormalidades na eletroforese de proteínas séricas e urinárias, nas quais uma proteína monoclonal é detectada como um pico estreito e localizado. Essas anomalias, muitas vezes, não têm um significado clínico determinado, mas, em alguns casos, podem indicar risco de progressão para doenças hematológicas graves, como o mieloma múltiplo.
Portanto, a investigação de picos monoclonais pode auxiliar no diagnóstico e na avaliação da resposta do paciente ao tratamento, permitindo a implementação de intervenções terapêuticas apropriadas. Neste conteúdo, você encontrará informações específicas sobre o significado clínico dos picos monoclonais e quais exames podem ser utilizados para avaliação.
O que é uma proteína monoclonal?
As proteínas monoclonais são assim designadas por serem produzidas a partir de um único clone de células, sendo consideradas imunoglobulinas disfuncionais. São formadas devido a mutações que podem ocorrer nos linfócitos B ou nos plasmócitos, sendo estas últimas células localizadas na medula óssea e responsáveis pela produção de imunoglobulinas.
Em uma resposta imunológica normal, os plasmócitos se desenvolvem com a ativação e diferenciação de linfócitos B. Após a exposição a antígenos (infecções virais ou bacterianas), as células B virgens normalmente proliferam e, subsequentemente, sofrem mutações somáticas.
Esse processo produz plasmócitos que passam a gerar e secretar imunoglobulinas policlonais funcionais (IgG, IgA, IgM, IgE, associadas às cadeias leves kappa ou lambda), que circulam no sangue e desempenham seu papel natural no sistema imune.
À medida que os plasmócitos se desenvolvem, os genes produtores de anticorpos de cada célula se rearranjam de maneira única. Isso significa que cada plasmócito é geneticamente diferente e produz um anticorpo também ligeiramente diferente. Ter uma grande variedade de anticorpos ajuda a aumentar a abrangência do sistema imune contra um número maior de antígenos. Em contrapartida, plasmócitos anormais não se desenvolvem da maneira usual. Eles surgem quando um único plasmócito sofre mutação genética e produz muitos clones de si. Todas essas células têm os mesmos rearranjos gênicos e produzem imunoglobulinas monoclonais (ou proteínas monoclonais) exatamente iguais.
Por definição, essas proteínas monoclonais são, de fato, imunoglobulinas, porém disfuncionais. Ou seja, são proteínas que não combatem a infecção e não têm uso real para o sistema imunológico. Nem todas as proteínas monoclonais são anticorpos inteiros, com as duas cadeias leves (kappa e lambda) e as duas cadeias pesadas, podendo ser constituídas apenas por proteínas de cadeia leve e nenhuma cadeia pesada.
É importante destacar que, além dos plasmócitos, as proteínas monoclonais podem ser produzidas por linfócitos B doentes, permitindo a detecção dessas proteínas em certos tipos de linfoma B, por exemplo.
Em quais doenças podemos encontrar proteínas monoclonais circulantes?
Altos níveis plasmáticos de proteínas monoclonais têm sido extensamente correlacionados com o diagnóstico de mieloma múltiplo e outros distúrbios de células plasmáticas. Entre os subtipos, são mais comumente encontrados na clínica os mielomas que possuem alterações em anticorpos IgG e IgA.
Como mencionado, ocasionalmente, as proteínas monoclonais podem ser traduzidas apenas em cadeias leves da imunoglobulina (kappa e lambda), desencadeando o chamado mieloma de cadeia leve.
Além do mieloma múltiplo, existem outras doenças que podem estar correlacionadas com o surgimento de picos monoclonais, como os linfomas de células B, amiloidose de cadeia leve e macroglobulinemia de Waldenström.
Quais os exames utilizados para avaliação de picos monoclonais?
A detecção e a avaliação de picos monoclonais podem ser realizadas por meio de diferentes exames, cada um fornecendo informações específicas sobre a natureza e a extensão dos picos monoclonais.
Eletroforese de Proteínas Séricas e Urinárias
A eletroforese de proteínas é uma das principais técnicas utilizadas. É um exame laboratorial que separa as proteínas presentes no soro ou na urina, com base em sua carga elétrica e tamanho molecular. Possibilita a quantificação do pico monoclonal e das proteínas do sangue de maneira geral, sem especificar qual é a proteína. Vale ressaltar que a eletroforese também quantifica outras proteínas séricas, e não somente imunoglobulinas.
Imunoeletroforese
A imunoeletroforese é uma extensão da eletroforese de proteínas, que utiliza anticorpos específicos para identificar diferentes tipos de proteínas, incluindo imunoglobulinas. É um exame que não quantifica a proteína, mas diz qual é o tipo de proteína monoclonal no sangue ou urina, bem como faz uma avaliação quantitativa de todas as imunoglobulinas, especificamente.
Imunofixação
A imunofixação é um teste complementar à imunoeletroforese que combina técnicas de eletroforese e imunoprecipitação, utilizado para confirmar e identificar o tipo específico da proteína monoclonal, permitindo uma caracterização mais precisa. Não é utilizado para quantificação.
Relação de cadeias leves livres
A relação de cadeias leves livres avalia a relação entre as cadeias leves kappa e lambda no soro. Em condições como mieloma múltiplo, essa relação pode estar alterada, indicando uma produção anormal de imunoglobulinas.
Imunofenotipagem por citometria de fluxo
A imunofenotipagem por citometria de fluxo é uma técnica que analisa as proteínas presentes na superfície das células, fornecendo a identificação e a caracterização de células malignas. É particularmente útil para diagnosticar e classificar distúrbios hematológicos, como linfomas e leucemias.
Qual a diferença entre gamopatia monoclonal de significado indeterminado e mieloma múltiplo?
Existem duas situações clínicas associadas à presença de picos monoclonais: condição pré-maligna, conhecida como Gamapatia Monoclonal de Significado Indeterminado (GMSI), e malignidade hematológica, conforme descreveremos a seguir.
Condição pré-maligna: Gamapatia Monoclonal de Significado Indeterminado
Alguns pacientes podem apresentar picos monoclonais sem sintomas evidentes de doença, sendo considerado um achado laboratorial conhecido como GMSI.
A GMSI é considerada um achado pré-maligno, mas sem evidência de uma doença hematológica estabelecida. Embora não haja evidência direta de câncer, a monitorização desses casos é importante, pois uma pequena proporção pode, eventualmente, progredir ao longo do tempo para mieloma múltiplo. Assim, a GMSI não é considerada uma doença.
A condição pode ocorrer em cerca de 3% das pessoas com mais de 50 anos e, geralmente, o seu diagnóstico é incidental. Pode ser definida laboratorialmente pela presença simultânea de picos monoclonais na eletroforese de proteínas séricas inferior a 3 g/dL, infiltração da medula óssea por plasmócitos malignos monoclonais inferior a 10% e ausência de lesão de órgão-alvo (critérios CRAB) relacionada ao mieloma múltiplo, especialmente hipercalcemia, alterações renais, anemia e lesões ósseas.
Nesse sentido, exames de imagem são importantes para avaliar lesões ósseas, bem como exames sanguíneos para detecção de alterações hematológicas e testes de função renal.
Malignidade hematológica: mieloma múltiplo
Existe a possibilidade dos picos monoclonais estarem associados a malignidades, sendo o mieloma múltiplo a forma de câncer mais comumente associada a esse tipo de alteração.
O mieloma múltiplo caracteriza-se por proliferação descontrolada de plasmócitos na medula óssea, resultando em alterações de elementos sanguíneos, lesões ósseas, lesão renal aguda, anemia e hipercalcemia. A idade mediana de início do mieloma múltiplo é de 69 anos, e aproximadamente 63% dos pacientes diagnosticados com a doença têm mais de 65 anos.
É preciso frisar que, embora exista a possibilidade de progressão da GMSI para o mieloma múltiplo, é pequena e dependente de fatores de risco pré-definidos. Os tipos de anticorpos alterados, a quantidade do componente monoclonal (igual ou superior a 1,5 g/dL) e a relação anormal das cadeias leves (relação kappa e lambda menor que 0,26 ou maior que 1,65) são considerados fatores de risco para progressão de GMSI para o mieloma múltiplo.
O mieloma indolente ou assintomático é um estágio de mieloma intermediário entre a GMSI e o mieloma ativo, e como o próprio nome já diz, normalmente, não se traduz em sinais e sintomas perceptíveis. Nesses casos, observam-se níveis maiores de proteína monoclonal e mais plasmócitos anormais na medula em comparação ao GMSI (componente M sérico acima de 3 g/dL e/ou plasmócitos na medula óssea acima de 10%). Esses pacientes não apresentam critérios CRAB, danos aos glóbulos vermelhos, rins, ossos ou eventos definidores de mieloma, entretanto, recomenda-se monitoramento contínuo para verificar a evolução do quadro clínico.
Já o mieloma múltiplo ativo pode ser diagnosticado se houver a presença de mais de 10% de plasmócitos na medula óssea, proteína monoclonal presente no sangue, razão da cadeia leve livre igual ou acima de 10, além de um ou mais critérios CRAB e/ou indicadores de dano ao órgão, tais como:
- Elevação dos níveis de cálcio: pode-se observar níveis sanguíneos acima de 10 mg/dL, em decorrência da liberação de cálcio dos ossos danificados;
- Disfunção renal: proteínas monoclonais anormais podem causar dano renal ao serem filtradas no órgão. Pode-se observar alterações em parâmetros de função renal, como creatinina acima de 2 mg/dL ou clearance de creatinina menor que 40 ml/min;
- Anemia: decorrente da diminuição no número e atividade de células produtoras de eritrócitos na medula óssea;
- Doença óssea: as células do mieloma ativam os osteoclastos e bloqueiam a atividade de osteoblastos. Dessa forma, podem ser detectadas lesões osteolíticas em radiografia do esqueleto, tomografia computadorizada ou PET/CT.
Prejuízos na função imunológica também podem estar presentes. As células do mieloma reduzem o número e a atividade de plasmócitos normais capazes de produzir anticorpos contra a infecção. Por esse motivo, o paciente poderá apresentar susceptibilidade e dificuldade de recuperação às infecções.
Além dos critérios diagnósticos laboratoriais, no mieloma múltiplo ativo, o paciente poderá manifestar sintomatologia, que inclui cansaço extremo, fraqueza, palidez, perda de peso, perda de apetite, dores ósseas e fraturas espontâneas.
Em relação ao tratamento, atualmente, não existe cura definitiva para o mieloma múltiplo, mesmo com o transplante. Contudo, os atuais avanços no campo da medicina têm proporcionado uma melhor compreensão da doença e o desenvolvimento de terapias alvo-direcionadas cada vez mais eficazes para seu controle, o que reflete em um aumento de tempo livre de progressão e maior expectativa de vida para o paciente.
Em resumo, os exames para avaliação de picos monoclonais desempenham um papel fundamental na identificação e caracterização de GMSI e mieloma múltiplo. Cada técnica oferece informações valiosas sobre a natureza e a extensão dos picos monoclonais, auxiliando no diagnóstico preciso e no planejamento do tratamento.
Para continuar aprofundando o seu conhecimento sobre neoplasias hematológicas, sugerimos a leitura do conteúdo sobre a utilidade diagnóstica do painel genético para neoplasias mieloides. Boa leitura!
Referências:
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