A deficiência da glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) é uma das enzimopatias hereditárias mais comuns no mundo, afetando entre 400 e 500 milhões de pessoas. No Brasil, essa condição também é prevalente, acometendo cerca de seis milhões de indivíduos. A G6PD desempenha um papel importante na via das pentoses-fosfato, protegendo as células contra o estresse oxidativo, especialmente os eritrócitos.
A deficiência dessa enzima pode levar a crises hemolíticas severas, quando os pacientes são expostos a determinados medicamentos, infecções e até alguns alimentos. O estudo molecular dessa deficiência tem se destacado como uma ferramenta inovadora para diagnóstico e manejo clínico, proporcionando uma visão mais precisa sobre as variantes genéticas envolvidas e permitindo um tratamento personalizado.
Para aprofundar seus conhecimentos sobre o estudo molecular da deficiência de G6PD e suas implicações clínicas, continue lendo este conteúdo.
Consequências clínicas da deficiência de G6PD
A deficiência de G6PD está associada a diversas manifestações clínicas que podem variar de assintomáticas até quadros graves de anemia hemolítica. Entre as principais complicações clínicas, estão:
- Anemia hemolítica induzida por medicamentos ou infecções: a exposição a medicamentos, como sulfonamidas, aspirina e antimaláricos, pode desencadear episódios hemolíticos em indivíduos com deficiência de G6PD. Além disso, infecções virais e bacterianas também podem precipitar crises, o que agrava o estado clínico do paciente.
- Icterícia neonatal: neonatos com deficiência de G6PD estão em risco aumentado de desenvolver icterícia nas primeiras 24 horas de vida. Em casos graves, essa icterícia pode evoluir para kernicterus, capaz de causar sequelas neurológicas permanentes. A fototerapia é uma das opções de tratamento e, em casos mais graves, pode ser necessária a exsanguineotransfusão.
Essas manifestações reforçam a importância de um diagnóstico precoce e preciso, sobretudo em neonatos e populações de risco, como afrodescendentes e habitantes de regiões onde a malária é endêmica. O nível de gravidade pode ser determinado de acordo com as variantes genéticas específicas da G6PD presentes em cada indivíduo.
Quais as vantagens do estudo molecular?
O diagnóstico molecular da deficiência de G6PD é um avanço significativo em relação aos métodos tradicionais de dosagem enzimática. Ele permite não apenas a identificação da condição, mas também a detecção das variantes genéticas específicas que influenciam a gravidade da deficiência. As principais vantagens do estudo molecular incluem:
- Maior precisão diagnóstica: enquanto a dosagem enzimática pode ser afetada por fatores pré-analíticos, como temperatura ou o momento da coleta, o estudo molecular oferece um diagnóstico mais exato. Isso é particularmente importante em casos de mulheres heterozigotas, nas quais a dosagem enzimática pode não ser conclusiva, devido à inativação randômica do cromossomo X. O estudo molecular também é importante para definir a presença de variantes que podem não se expressar de maneira clara nas análises enzimáticas tradicionais.
- Identificação das variantes genéticas: no Brasil, as variantes mais comuns associadas à deficiência de G6PD são G202A, A376G e C563T. A variante G202A, muitas vezes associada ao A376G, resulta em uma forma mais branda da condição, com 10% a 60% da atividade enzimática. Já a variante C563T, encontrada na variante mediterrânea, está associada a quadros severos, pois afeta as células mais novas, resultando em crises hemolíticas mais graves. A detecção dessas variantes é necessária para orientar o manejo clínico adequado, evitando complicações futuras.
- Personalização do tratamento: com o diagnóstico molecular, os médicos podem ajustar o manejo clínico com mais segurança, conforme a gravidade da deficiência. Por exemplo, indivíduos com variantes genéticas mais graves podem necessitar de uma vigilância mais rigorosa e evitar determinados medicamentos ou alimentos de forma definitiva. O estudo molecular permite a individualização do tratamento, prevenindo crises hemolíticas e melhorando a qualidade de vida do paciente.
- Benefícios para neonatos e mulheres heterozigotas: em recém-nascidos, a identificação precoce da deficiência de G6PD pode evitar complicações graves, como kernicterus. Durante a crise hemolítica, a dosagem de G6PD pode ser falsamente elevada pela presença de reticulócitos ricos em enzima, principalmente quando a variante é a A- e o diagnóstico molecular não apresenta interferências. Já em mulheres heterozigotas, que podem não manifestar sintomas de forma clara, o estudo molecular também permite um diagnóstico preciso, auxiliando no aconselhamento genético e manejo clínico.
Métodos tradicionais de diagnóstico da deficiência de G6PD
Historicamente, o diagnóstico da deficiência de G6PD era realizado, com maior predominância, por meio da quantificação enzimática, que mede a atividade da G6PD nas hemácias. No entanto, esse método apresenta limitações específicas, notadamente em determinadas condições pré-analíticas que podem comprometer a precisão dos resultados.
Fatores como a temperatura da amostra e o intervalo de tempo entre a coleta e o processamento podem influenciar os resultados, aumentando o risco de falso-positivos. Essas limitações reforçam a necessidade de complementar a dosagem enzimática com o diagnóstico molecular, especificamente em situações clínicas nas quais o resultado da quantificação não é conclusivo.
Análise das variantes por sequenciamento de Sanger
O estudo molecular da G6PD é realizado a partir de uma amostra de DNA, que pode ser obtida por meio de coleta de sangue venoso ou de raspado de mucosa oral, utilizando um swab.
No Sabin, por exemplo, o DNA é extraído, e as regiões do gene G6PD são amplificadas por PCR, seguindo-se o sequenciamento bidirecional pela metodologia de Sanger. Esse processo permite uma detecção eficaz das variantes mais comuns na população brasileira.
A análise é feita com a utilização de ferramentas bioinformáticas, que comparam as sequências obtidas com o genoma de referência. Esse método oferece alta exatidão na identificação das variantes, auxiliando diretamente na condução do tratamento.
O estudo molecular supera as limitações dos métodos tradicionais, representando uma grande evolução no diagnóstico e manejo da deficiência de G6PD. Com ele, é possível detectar as alterações genéticas que levaram à deficiência da enzima, permitindo um diagnóstico mais preciso e uma orientação mais personalizada. A identificação precoce da deficiência, especialmente em grupos de risco, é essencial para evitar desfechos clínicos adversos e melhorar consideravelmente a qualidade de vida dos pacientes.
Profissionais que lidam com pacientes de risco para deficiência de G6PD devem considerar o uso do diagnóstico molecular como uma ferramenta no manejo da condição. Essa abordagem garante uma condução mais segura para o seguimento do paciente, reduzindo as chances de crises e complicações graves.
Para complementar o seu conhecimento, confira nosso conteúdo sobre a utilidade diagnóstica dos exames genéticos, acessando “Exames genéticos: como utilizar para o diagnóstico de doenças?”.
Referências:
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Sociedade Brasileira de Pediatria. Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase – G6PD. Documento científico. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/23282b-DC-Deficiencia_Glicose-6_G6PD.pdf.