A investigação de distúrbios hemorrágicos é uma prática comum na medicina, especialmente em pacientes que apresentam sangramentos espontâneos ou excessivos após traumas ou cirurgias. O papel do hematologista se torna ainda mais importante quando anomalias são detectadas em exames de triagem de hemostasia em indivíduos assintomáticos, seja em avaliações pré-operatórias ou no acompanhamento de outras condições médicas.
Para uma avaliação clínico-laboratorial eficaz, é fundamental ter uma história clínica bem detalhada, assim como um exame físico direcionado para identificar sinais de distúrbios hemostáticos. Adicionalmente, solicitação e interpretação precisas de exames laboratoriais específicos são essenciais para fornecer diagnóstico e tratamento adequados, assegurando a melhor abordagem terapêutica para cada paciente.
Neste conteúdo, você encontrará informações detalhadas sobre os principais exames especiais utilizados para a investigação de síndromes hemorrágicas. Confira!
Síndromes hemorrágicas
As síndromes hemorrágicas englobam uma série de condições clínicas caracterizadas por sangramentos de intensidade variável, que podem ocorrer de forma espontânea ou em decorrência de traumas. Esses episódios hemorrágicos podem afetar diversos locais do corpo, estando presentes no nascimento ou sendo diagnosticados ao longo da vida.
As doenças hemorrágicas podem ser divididas em dois grandes grupos, dependendo do local da falha na hemostasia. O primeiro grupo inclui os distúrbios plaquetários, que resultam de uma disfunção ou redução nos níveis de plaquetas, como as púrpuras e outras condições associadas. O segundo grupo compreende as coagulopatias, causadas pela redução ou ausência de alguns fatores de coagulação. Essas coagulopatias podem ser hereditárias, como a hemofilia e a doença de von Willebrand.
A hemofilia é uma coagulopatia hereditária causada por um gene anormal ligado ao cromossomo X, que impede a coagulação do sangue devido à deficiência de um dos fatores de coagulação. Existem dois tipos principais de hemofilia: a hemofilia A, que resulta da deficiência do fator VIII da coagulação; e a hemofilia B, decorrente da deficiência do fator IX da coagulação. A hemofilia A é a forma mais frequente, ocorrendo em aproximadamente um em cada dez mil homens, enquanto a hemofilia B é três a quatro vezes menos comum.
A doença de von Willebrand também é uma coagulopatia hereditária, resultante da deficiência quantitativa e/ou qualitativa do fator von Willebrand (vWF). No entanto, no Brasil, essa condição parece ser subdiagnosticada, com um número de casos reportados significativamente inferior ao de hemofílicos. Isso se deve à variabilidade clínica da doença, que pode se manifestar desde sangramentos leves até quadros hemorrágicos graves, tornando o diagnóstico desafiador.
O manejo das síndromes hemorrágicas requer um entendimento detalhado das especificidades de cada condição, dos fatores desencadeantes e das opções de tratamento disponíveis. O diagnóstico precoce e a intervenção adequada são cruciais para melhorar a qualidade de vida dos pacientes e minimizar as complicações associadas a essas doenças.
Como investigar as síndromes hemorrágicas?
A investigação de síndromes hemorrágicas começa a partir de uma triagem básica, que considera o histórico clínico detalhado do paciente e a caracterização do episódio de sangramento.
Exames adicionais de triagem podem ser realizados, como o coagulograma, englobando o tempo de protrombina (TP), o tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA) e a contagem de plaquetas.
- TP: anormalidades nas vias extrínseca e comum da coagulação podem prolongar o TP (fatores VII, V, X, protrombina ou fibrinogênio);
- TTPa: avalia as vias intrínseca e comum da cascata da coagulação (pré-calicreína, cininogênio de alto peso molecular, fatores XII, XI, IX, VIII, X, V, protrombina e fibrinogênio);
- Contagem de plaquetas: é um exame que deve ser realizado para detectar trombocitopenia, definida como uma contagem de plaquetas inferior a 150.000/mm³.
Embora essa etapa de triagem seja imprescindível para identificar anormalidades na coagulação e orientar a investigação, são os exames especiais que irão aprofundar a avaliação diagnóstica das síndromes hemorrágicas. Nesse sentido, a partir dos resultados preliminares obtidos na triagem inicial, o médico especialista deverá avançar para exames mais específicos, que permitirão uma análise mais detalhada e precisa dos fatores de coagulação e das plaquetas do paciente.
Exames especiais
Os exames especiais são indispensáveis para um diagnóstico preciso e a orientação do tratamento correto em casos de síndrome hemorrágica. A seguir, explicaremos em mais detalhes alguns dos principais exames utilizados nesse contexto clínico.
Dosagem de fatores da coagulação
A dosagem de fatores da coagulação mede a atividade específica de diversos fatores da coagulação no plasma sanguíneo, permitindo a identificação de deficiências que podem estar causando os sintomas hemorrágicos.
O exame é indicado em casos suspeitos de distúrbios hemorrágicos hereditários, como a hemofilia A (deficiência de fator VIII) e a hemofilia B (deficiência de fator IX), bem como em outras condições como a deficiência de fator XI e a doença de von Willebrand. Além disso, esse exame é útil para a avaliação de coagulopatias adquiridas, que podem ocorrer em doenças hepáticas, em síndromes de má absorção (que levam à deficiência de vitamina K) e na presença de inibidores circulantes de fatores da coagulação.
A interpretação dos resultados é baseada na comparação dos níveis de atividade dos fatores com os valores de referência estabelecidos para a população saudável. Níveis reduzidos indicam uma deficiência que pode ser hereditária ou adquirida. Na presença de inibidores, como anticorpos contra fatores de coagulação, pode-se observar níveis aparentemente normais de fatores, mas com o prolongamento dos testes de coagulação (TP e TTPA), exigindo testes adicionais para confirmação.
Pesquisa de von Willebrand
A doença de von Willebrand é um distúrbio hemorrágico hereditário causado pela deficiência ou disfunção do fator de von Willebrand (vWF), uma proteína essencial para a adesão plaquetária e proteção do fator VIII. A investigação dessa condição requer um conjunto de exames laboratoriais para avaliar tanto a quantidade quanto a funcionalidade do fator de von Willebrand.
Dosagem do vWF
A dosagem do antígeno do vVW mensura a quantidade total do fator presente no plasma do paciente. Os níveis plasmáticos de vVW podem ser afetados por diversos fatores fisiológicos, como idade, etnia, hormônios e tipo sanguíneo ABO. É reconhecido que indivíduos com tipo sanguíneo O tendem a apresentar, em média, 25% menos vWF circulante em comparação com outros grupos sanguíneos.
Os métodos imunológicos, como o radioimunoensaio ou o imunoensaio enzimático, são os mais comuns para a detecção de vWF, em virtude da maior sensibilidade e precisão. Níveis reduzidos de vWF são encontrados nas deficiências quantitativas, como nos tipos I e III da doença de von Willebrand. Já nas variantes do tipo II, os níveis podem estar diminuídos ou dentro da faixa normal.
Fator VIII
É uma proteína de coagulação que trabalha em conjunto com o vWF. Na doença de von Willebrand, os níveis de fator VIII podem estar reduzidos, por conta da instabilidade do fator na ausência de vWF. Esse teste é realizado simultaneamente com a dosagem de vWF para avaliar a interação entre as duas proteínas. A determinação do fator VIII é feita por meio do método coagulométrico, baseado no TTPA, ou cromogênico, baseado na geração de fator X ativado.
Atividade do cofator da ristocetina
A ristocetina é um antibiótico que promove a agregação plaquetária na presença de vWF. O teste de atividade cofator da ristocetina mede a capacidade do vWF de aglutinar plaquetas na presença de ristocetina. Uma amostra de plasma é misturada com plaquetas e ristocetina, e a aglutinação resultante é medida. A ligação entre vWF e a plaqueta, na presença de baixa concentração de ristocetina, é testada, utilizando-se GPIb plaquetária fixada em placa.
Agregação plaquetária com ristocetina
Avalia a resposta das plaquetas à ristocetina, medindo sua capacidade de agregação. Esse teste é realizado por meio da mistura de plaquetas do paciente junto à ristocetina, monitorando-se a agregação resultante, com base na captação da luz transmitida através da suspensão de plasma rico em plaquetas. A transmissão da luz aumenta com a formação de aglutinados plaquetários, após a adição de ristocetina em concentrações diferentes (baixa e alta concentrações).
Avaliação de resposta do fator VIII e do fator de von Willebrand ao DDAVP
O teste de resposta ao DDAVP (desmopressina) é uma ferramenta importante na investigação e no manejo da doença de von Willebrand. A desmopressina é um análogo sintético da vasopressina, que promove a liberação de estoques de fator von Willebrand (vWF) e fator VIII armazenados nas células endoteliais.
Esse teste avalia a capacidade do organismo de aumentar os níveis desses fatores em resposta ao estímulo farmacológico, ajudando a determinar a eficácia do DDAVP no tratamento de distúrbios hemorrágicos.
Agregação plaquetária
O teste de avaliação funcional plaquetária detecta distúrbios nas plaquetas, tanto de origem congênita quanto adquirida. A partir da resposta a diversos agentes agregantes, como adrenalina, ADP, colágeno e a mencionada ristocetina, é possível identificar e caracterizar essas condições.
O procedimento é realizado com um equipamento denominado agregômetro, que utiliza a espectrofotometria para registrar as mudanças na densidade óptica de uma suspensão de plaquetas, fornecendo dados relevantes para a avaliação da funcionalidade plaquetária.
Imunofenotipagem plaquetária
A imunofenotipagem plaquetária é um exame laboratorial utilizado para caracterizar as plaquetas por meio de marcadores específicos presentes em sua superfície, permitindo a investigação de anormalidades na quantidade e função das plaquetas.
A imunofenotipagem plaquetária pode ser utilizada para a investigação de distúrbios plaquetários hereditários, como a síndrome de Bernard-Soulier (deficiência de GPIb/IX/V) e a trombastenia de Glanzmann (deficiência de GPIIb/IIIa), conforme a ausência ou diminuição dos antígenos correspondentes.
Em suma, os exames especiais para a investigação de síndromes hemorrágicas são ferramentas primordiais para identificar a causa subjacente dos sangramentos e orientar a terapia adequada. Cada um desses testes fornece informações detalhadas sobre diferentes aspectos da hemostasia, permitindo uma abordagem diagnóstica abrangente e personalizada.
A correta interpretação desses exames não apenas facilita o diagnóstico preciso, como também direciona o tratamento mais eficaz, melhorando a qualidade de vida dos pacientes e prevenindo complicações hemorrágicas graves. Para aprofundar seu conhecimento e explorar mais sobre a investigação e o manejo de síndromes hemorrágicas, acesse nosso conteúdo exclusivo sobre a avaliação laboratorial da hemostasia na prática médica.
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