O Teste do Pezinho é um procedimento fundamental para a detecção precoce de doenças em recém-nascidos, incluindo condições genéticas e não genéticas, metabólicas e não metabólicas. É um exame simples que reduz a morbidade e mortalidade já nos primeiros dias de vida.
Ao longo dos anos, a triagem neonatal evoluiu consideravelmente, com a incorporação de novos exames capazes de identificar um número cada vez maior de enfermidades. Atualmente, é possível detectar dezenas de condições clínicas por meio desse tipo de triagem.
Os recentes avanços têm permitido um diagnóstico mais rápido e preciso, possibilitando o início do tratamento de forma precoce. O tratamento adequado e o acompanhamento médico especializado são essenciais para evitar complicações graves e melhorar significativamente a qualidade de vida dos recém-nascidos.
Neste conteúdo, você encontrará informações importantes a respeito da triagem neonatal e a incorporação de novos exames no Teste do Pezinho disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Histórico de desenvolvimento do Teste do Pezinho
O Teste do Pezinho foi desenvolvido na década de 60, nos Estados Unidos (EUA), pelo pesquisador americano Dr. Robert Guthrie, para a detecção precoce de bebês portadores de fenilcetonúria, uma doença metabólica hereditária causada pelo aumento nas concentrações do aminoácido fenilalanina no organismo, especialmente no sangue e no cérebro. A ação nociva dos níveis elevados de fenilalanina é observada após exposições prolongadas durante o desenvolvimento do bebê e da criança, o que pode ser evitado com um diagnóstico precoce da condição.
O desenvolvimento do teste teve um significativo impacto, pois permitiu a detecção da condição em pacientes ainda sem manifestações clínicas e o início da restrição dietética em um momento em que o benefício ao paciente é máximo, garantindo o desenvolvimento saudável da criança.
Assim, nascia o embrião do que viria a ser o atual Teste do Pezinho, tornando-se obrigatório em muitos estados dos EUA. Com tamanho sucesso, testes para identificação de outras condições foram sendo desenvolvidos ao longo dos anos, difundindo, cada vez mais, a importância da triagem de neonatos no mundo.
Criação do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN)
No Brasil, a triagem neonatal teve início nos anos 70, porém, de forma não regulamentada. Somente em 1992, o teste se tornou obrigatório em solo brasileiro, por meio de lei que incorporou o Teste do Pezinho no SUS.
A legislação em questão determinava a obrigatoriedade do teste em todos os recém-nascidos vivos e incluía a avaliação para fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito. O procedimento foi incorporado na tabela SIA/SUS, na seção de Patologia Clínica.
Com o passar do tempo, foram incorporados testes para outras doenças na triagem neonatal, contemplando até seis doenças:
- fenilcetonúria;
- hipotireoidismo congênito;
- doenças falciformes;
- fibrose cística;
- hiperplasia adrenal congênita;
- deficiência de biotinidase.
É importante destacar que existem outras variações do Teste do Pezinho, além da atualmente disponível pelo SUS. Há versões ampliadas disponibilizadas tanto pela rede pública, em alguns estados da Federação, como também em laboratórios da rede privada, que abrangem o rastreio de mais de 50 doenças.
Ampliação no número de doenças detectadas pelo Teste do Pezinho
Visando melhorar a capacidade de rastreio do Teste do Pezinho, foi aprovada uma nova lei que amplia a abrangência do exame ofertado pelo SUS. A Lei nº 14.154, de 26 de maio de 2021, aumentou o rol de detecção para 14 grupos de doenças.
A lei já está em vigor, e as mudanças estão sendo feitas de forma escalonada (em cinco etapas), em prazos definidos pelo Ministério da Saúde (MS), conforme explicamos a seguir.
Etapa I
Na primeira etapa (em vigor), além da manutenção da triagem para as seis doenças já contempladas, foram incorporados testes para outras hiperfenilalaninemias, outras hemoglobinopatias e para a toxoplasmose congênita.
Hiperfenilalaninemias
A fenilcetonúria clássica é uma doença autossômica recessiva causada por mutações no gene PAH, que codifica a enzima hepática fenilalanina-hidroxilase envolvida no metabolismo da fenilalanina. Nesses quadros, o paciente apresenta deficiência ou ausência da enzima e eleva os níveis do aminoácido no sangue e no cérebro (hiperfenilalaninemia).
Em concentrações elevadas, a fenilalanina é tóxica, principalmente para as células nervosas, podendo causar lesões cerebrais e deficiência cognitiva na criança, entre outros problemas graves de desenvolvimento.
Nessa atualização, foram incorporados também outros quadros de hiperfenilalaninemia que não estão necessariamente ligados à fenilcetonúria clássica, como quadros clínicos leves que necessitam de tratamento e monitoramento da condição e hiperfenilalaninemias transitórias (manifestação geralmente benigna e sem sintomas).
Outras hemoglobinopatias
Além da anemia falciforme, outras hemoglobinopatias foram incluídas no Teste do Pezinho, como a talassemia, uma doença genética hereditária causada por mutações nos genes da globina. Essas mutações levam a alterações na produção da proteína, gerando deficiência na produção de hemoglobina.
Toxoplasmose congênita
Anteriormente incluída apenas em Testes do Pezinho na versão ampliada, nessa atualização, a toxoplasmose congênita também foi incluída no rol de doenças do PNTN.
A toxoplasmose é causada pelo parasita Toxoplasma gondii e pode ser transmitida da mãe para o feto durante a gestação. A infecção materna se dá, primariamente, pela ingestão de cistos contidos em alimentos contaminados ou que foram mal cozidos e pela ingestão de oocistos derivados de alimentos ou água contaminada com fezes de gato.
Quando uma mulher grávida é infectada pelo Toxoplasma gondii, o parasita pode atravessar a placenta e atingir o feto em desenvolvimento. A gravidade dos sintomas e das complicações associadas à toxoplasmose congênita varia conforme o momento em que a infecção ocorre durante a gestação.
Neonatos infectados são, geralmente, assintomáticos no nascimento, mas possuem risco de apresentar icterícia, hepatoesplenomegalia, miocardite, exantema, coriorretinite, hidrocefalia, calcificações intracranianas, microcefalia e convulsões. Sequelas neurológicas e oftalmológicas também podem surgir, inclusive, muitos anos após o nascimento.
Etapa II
Nesta fase, serão incorporados testes para a detecção de galactosemias, aminoacidopatias, transtornos do ciclo da ureia e transtornos da beta-oxidação de ácidos graxos.
Galactosemias
São doenças genéticas raras causadas por variantes em genes, que codificam enzimas participantes do metabolismo da galactose, resultando em ineficiência enzimática e acúmulo de açúcar no organismo.
Existem diferentes tipos de galactosemias, sendo a deficiência da enzima galactose-1-fosfato uridil transferase (galactosemia clássica) a forma mais grave. O acúmulo de galactose pode levar a complicações graves, como danos hepáticos, problemas renais, transtornos neurológicos e atraso no desenvolvimento e crescimento.
Pode ocorrer, ainda, a deficiência das enzimas galactoquinase. galactose 4-epimerase uridina difosfato e galactose mutarose, participantes da via metabólica da galactose que também podem levar a problemas de saúde na criança, embora menos graves quando comparadas à galactosemia clássica.
Aminoacidopatias
As aminoacidopatias são um grupo de erros inatos do metabolismo ou transporte de aminoácidos, causando o acúmulo dessas substâncias no organismo. A fenilcetonúria é o exemplo mais conhecido, entretanto, existem outras aminoacidopatias que podem ser detectadas pelo Teste do Pezinho.
Distúrbios do ciclo da ureia
São um grupo de doenças genéticas raras que afetam o metabolismo da ureia, principalmente no fígado, o órgão responsável pela conversão da amônia em ureia para sua posterior excreção na urina.
São doenças caracterizadas por deficiências em enzimas específicas envolvidas no ciclo da ureia, o que leva ao acúmulo de amônia no sangue. A amônia em excesso é tóxica para o sistema nervoso central e pode causar danos cerebrais graves, se não for devidamente processada e excretada.
Existem vários tipos de distúrbios do ciclo da ureia, dependendo do gene específico afetado. Alguns dos distúrbios mais comuns incluem deficiências de enzimas como a carbamoil fosfato sintetase I (CPSI), ornitina transcarbamilase (OTC), argininosuccinato sintetase (ASS) e a deficiência de arginase.
Transtornos da beta-oxidação dos ácidos graxos
São condições genéticas que afetam a capacidade do organismo de metabolizar adequadamente os ácidos graxos, devido a deficiências em enzimas específicas ou transportadores envolvidos no processo da beta-oxidação.
Durante a beta-oxidação, os ácidos graxos são degradados em acetil-CoA, moléculas utilizadas no ciclo do ácido cítrico para gerar energia. No entanto, nessas doenças, o metabolismo não ocorre corretamente, resultando no acúmulo de ácidos graxos de cadeia longa ou intermediários tóxicos. Pacientes afetados com transtornos da beta-oxidação são particularmente suscetíveis a situações em que há aumento das demandas energéticas (como episódios de febre e infecções) ou em que há redução da ingesta (como o jejum prolongado), que pode desencadear episódios graves de hipoglicemia.
Existem vários tipos de transtornos da beta-oxidação, dependendo da enzima ou do transportador afetado. Alguns exemplos incluem a deficiência de acil-CoA desidrogenase de cadeia média, a deficiência de acil-CoA desidrogenase de cadeia longa, a deficiência de acil-CoA desidrogenase de cadeia curta e a deficiência de carnitina palmitoil transferase I, entre outros.
Etapa III: doenças lisossômicas
As doenças lisossômicas são um grupo de distúrbios genéticos caracterizados pela deficiência de enzimas lisossomais, ativadores de proteínas ou proteínas de transporte.
Essas alterações levam ao acúmulo de substratos metabólicos não degradados nos lisossomos, gerando alterações bioquímicas e dano celular progressivo, com manifestações clínicas de acordo com tecidos e órgãos mais acometidos. Por esse motivo, existe grande variabilidade clínica entre as doenças desse grupo, mas todas apresentam manifestações multissistêmicas.
As doenças lisossomais englobam mais de 50 doenças genéticas, incluindo a doença de Fabry, doença de Gaucher, doença de Pompe e a mucopolissacaridose, as quais foram contempladas pela nova atualização do Teste do Pezinho (SUS).
Doença de Fabry
A doença de Fabry é uma doença metabólica hereditária ligada ao cromossomo X causada pela deficiência da enzima lisossomal alfa-galactosidase A (alfa-gal A). Essa deficiência leva ao acúmulo de glicoesfingolipídeos (globotriaosilceramida) dentro da célula, que se depositam em diversos tecidos, principalmente no endotélio vascular, vasos linfáticos, coração e rins.
Como consequência, o paciente pode desenvolver angioqueratomas, acroparestesias, opacidade da córnea, episódios febris recorrentes e insuficiências renal e cardíaca.
Doença de Gaucher
A doença de Gaucher é um distúrbio genético hereditário recessivo causado pela deficiência da enzima glicocerebrosidase, a qual possui a função de metabolizar o lipídio glicocerebrosídeo. Sem a ação da enzima, o glicocerebrosídeo se acumula dentro dos lisossomos e, consequentemente, dentro de macrófagos (células de Gaucher).
Com o passar do tempo, as células de Gaucher começam a se acumular dentro de órgãos como o fígado e o baço, causando hepatoesplenomegalia. Nas formas neuropáticas da doença, essas células podem se acumular em espaços perivasculares cerebrais, causando gliose e alterações no sistema nervoso central.
Doença de Pompe
Também conhecida como glicogenose tipo II, a doença de Pompe é uma condição genética causada pela deficiência da enzima alfa-glicosidase ácida (GAA), que leva ao acúmulo progressivo de glicogênio dentro dos lisossomos, sobretudo em tecidos como a musculatura esquelética.
Com a evolução do quadro, surgem danos progressivos nos tecidos musculares e em outros órgãos, como o coração, fígado e sistema nervoso. A doença possui padrão de herança autossômico recessivo e sua sintomatologia inclui fraqueza muscular e dificuldade respiratória, que pode agravar e levar o paciente a óbito.
Mucopolissacaridose (MPS)
São doenças causadas por variantes genéticas em diferentes enzimas responsáveis pela decomposição e reciclagem de moléculas de açúcar complexas (mucopolissacarídeos ou glicosaminoglicanos) nos lisossomos, gerando acúmulo dessas substâncias e danos progressivos nos tecidos e órgãos.
Existem diferentes tipos de MPS, sendo os sete principais classificados como MPS I (incluído na triagem neonatal), MPS II, MPS III, MPS IV, MPS VI, MPS VII e MPS IX, com base nas diferentes enzimas afetadas.
Cada tipo de MPS apresenta características clínicas distintas que podem variar quanto à gravidade, como anormalidades ósseas, baixa estatura, alterações craniofaciais, problemas cardíacos, problemas respiratórios, alterações na visão e audição, atraso no desenvolvimento, problemas de aprendizado, danos em órgãos internos e distúrbios neurológicos.
Etapa IV: imunodeficiências primárias
As imunodeficiências primárias são um grupo heterogêneo de alterações genéticas do sistema imunológico, que levam a uma função imunológica anormal ou deficiente, tornando os indivíduos mais suscetíveis a infecções recorrentes, graves ou incomuns.
São causadas por alterações genéticas herdadas que afetam as células e os componentes do sistema imunológico, como linfócitos, anticorpos, fagócitos e o sistema-complemento. Esses defeitos podem resultar em diferentes tipos de imunodeficiências, dependendo da parte do sistema imunológico afetada.
De origem monogênica, são determinadas por um ou poucos genes, além de serem consideradas emergências médicas pelo seu potencial em comprometer gravemente a saúde do recém-nascido.
Etapa V: Atrofia Muscular Espinhal (AME)
A última etapa contempla a inclusão da Atrofia Muscular Espinhal (AME) no rol de doenças rastreadas pelo Teste do Pezinho. A AME é uma doença genética rara e progressiva que afeta as células nervosas responsáveis pelo controle dos músculos voluntários. É causada por mutações no gene SMN1 (Survival Motor Neuron 1), que codifica a produção da proteína de sobrevivência dos neurônios motores (SMN).
A falta ou deficiência da proteína leva à degeneração progressiva dos neurônios motores localizados no corno anterior da medula espinhal e dos núcleos motores no tronco encefálico, gerando atrofia da musculatura, hipotonia, hiporreflexia, dificuldades de sucção, deglutição e respiração, deficiência de desenvolvimento e, nos tipos mais graves da doença, morte precoce (antes do primeiro ano de vida).
Vale reforçar que os prazos para a inclusão das doenças citadas são determinados pelo MS. Atualmente, existem alguns estados que já incorporaram exames da etapa III, portanto, é importante verificar, de forma específica, o estágio em que cada região se encontra.
Como direcionar o paciente para o tratamento?
Embora todas as doenças identificadas no Teste do Pezinho sejam tratáveis, muitas delas envolvem a utilização de tratamentos de alto custo para controlar os sintomas, prevenir complicações e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Esse pode ser um obstáculo significativo para muitas famílias, tornando necessário buscar auxílio do governo para obter acesso ao tratamento adequado.
É fundamental que os familiares dos recém-nascidos que apresentam confirmação diagnóstica sejam orientados por uma equipe interdisciplinar para obter o tratamento necessário. Existem programas de saúde específicos para subsidiar esse tipo de tratamento ou fornecer suporte financeiro a essas famílias. É importante entrar em contato com as autoridades de saúde competentes para obter informações sobre os programas disponíveis em cada região.
As instituições privadas de medicina diagnóstica também podem atuar na realização do Teste do Pezinho, permitindo o diagnóstico precoce das doenças. Contudo, é necessário esclarecer que essas instituições não exercem um papel terapêutico no tratamento das doenças identificadas. O papel dos médicos e profissionais de saúde é encaminhar e orientar os familiares para buscar o suporte adequado e garantir o acesso ao tratamento.
Agora que você já sabe quais as novas doenças incluídas no Teste do Pezinho oferecido pelo SUS, sugerimos a leitura do conteúdo sobre a inclusão da detecção molecular do citomegalovírus na triagem neonatal.
Referências:
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