A hemocromatose hereditária (HH) é uma doença genética caracterizada pelo acúmulo progressivo de ferro no organismo. Sem diagnóstico e tratamento adequados, essa sobrecarga pode levar a complicações graves, como cirrose hepática, diabetes mellitus e insuficiência cardíaca. A detecção precoce é a abordagem central para prevenir danos irreversíveis aos órgãos e garantir um prognóstico favorável.
O diagnóstico envolve uma combinação de exames laboratoriais, testes genéticos e exames de imagem para confirmar a sobrecarga de ferro e descartar outras condições com manifestações clínicas semelhantes. Nos casos em que há comprometimento hepático, exames de imagem também podem ser indicados para mensurar o acúmulo de ferro nos órgãos.
No conteúdo de hoje, apresentamos as principais atualizações sobre as abordagens laboratoriais que auxiliam no diagnóstico da hemocromatose. Acompanhe a leitura e fique por dentro!
Exames laboratoriais para a triagem da hemocromatose
A investigação inicial da hemocromatose baseia-se em exames laboratoriais que avaliam a homeostase do ferro. Os testes mais utilizados para a triagem incluem a saturação de transferrina (TS) e a ferritina sérica (SF), ambos essenciais para a identificação da sobrecarga de ferro e a definição da necessidade de investigação complementar.
Saturação de transferrina (TS)
A saturação de transferrina (TS) é o marcador mais sensível para o rastreamento da hemocromatose, sendo indicado como teste inicial na avaliação da condição. Valores acima de 45% são sugestivos da doença, especialmente em pacientes homozigotos para a mutação C282Y do gene HFE. Como a TS pode apresentar variações fisiológicas, é recomendada a repetição do exame em diferentes momentos, para maior confiabilidade na interpretação dos resultados.
Ferritina sérica (SF)
A ferritina sérica (SF) reflete os estoques de ferro no organismo e encontra-se elevada na maioria dos pacientes com hemocromatose hereditária. São indicativos de acúmulo férrico: em homens, valores superiores a 300 ng/mL; em mulheres, acima de 200 ng/mL. No entanto, a ferritina também pode estar elevada em processos inflamatórios, doenças hepáticas ou neoplasias, o que exige correlação com outros exames laboratoriais para evitar falso-positivos.
Outros exames laboratoriais complementares
Além da TS e da ferritina sérica, outros exames complementares contribuem para a avaliação da hemocromatose. A capacidade total de ligação ao ferro (TIBC) pode estar reduzida na HH, refletindo a saturação elevada de transferrina. As enzimas hepáticas (ALT e AST) devem ser monitoradas para identificar eventual acometimento hepático secundário à sobrecarga de ferro. Já a avaliação glicêmica, incluindo glicemia de jejum e hemoglobina glicada (HbA1c), é fundamental para detectar o impacto do acúmulo férrico na função pancreática, dado que a hemocromatose está associada a um risco aumentado de diabetes mellitus.
Testes genéticos no diagnóstico de hemocromatose hereditária
A análise genética do gene HFE representa um passo importante para confirmar o diagnóstico da hemocromatose hereditária. A identificação das mutações permite diferenciar a HH de outras causas de sobrecarga de ferro e auxilia na estratificação do risco para familiares assintomáticos.
Identificação de mutações do gene HFE
A mutação C282Y em homozigose é a alteração mais usualmente associada à HH, sendo responsável pela maioria dos casos clínicos. Pacientes heterozigotos compostos para C282Y/H63D podem apresentar sobrecarga de ferro, embora com menor penetrância. Outras variantes, como H63D/H63D e S65C, têm impacto clínico reduzido e raramente resultam em manifestações graves da doença.
Quando solicitar o teste genético?
O teste molecular do gene HFE é indicado em casos de: saturação de transferrina persistentemente elevada (>45%); ferritina elevada sem outra explicação aparente; história familiar positiva de hemocromatose; diagnóstico diferencial de hepatopatias crônicas. A triagem genética também pode ser útil na identificação de indivíduos assintomáticos em famílias com casos confirmados de HH.
Investigação de hemocromatose não relacionada ao gene HFE
Quando não são detectadas mutações no gene HFE, outras causas genéticas podem ser investigadas. O Painel Molecular para Hemocromatose Hereditária (PAINHH), disponível no Sabin, possibilita a análise de genes como TFR2, SLC40A1, HJV e HAMP, associados a formas raras da doença. Esse painel é realizado por Sequenciamento de Nova Geração (NGS), a partir de uma amostra de sangue, permitindo maior precisão diagnóstica e diferenciando os subtipos genéticos da hemocromatose.
Em alguns casos, a avaliação complementar da sobrecarga de ferro nos órgãos pode ser realizada com exames de imagem (sobretudo em casos avançados), a exemplo da ressonância magnética.
Populações de risco e complicações da hemocromatose
A hemocromatose hereditária é uma condição que requer monitoramento criterioso de populações específicas com maior predisposição à doença. Sabemos que indivíduos de ascendência do norte europeu, particularmente irlandeses e escandinavos, podem apresentar maior prevalência da mutação C282Y do gene HFE, principal causa da HH tipo 1. A condição é mais comum em homens, uma vez que as mulheres perdem ferro regularmente durante a menstruação, o que reduz a carga férrica ao longo da vida.
Pacientes com história familiar positiva para hemocromatose devem ser rastreados precocemente, considerando que a progressão da doença pode ser silenciosa e assintomática até o desenvolvimento de complicações. Para esses casos, recomenda-se a triagem genética de irmãos e filhos dos indivíduos diagnosticados, pois a identificação de portadores assintomáticos facilita o monitoramento antes da instalação da sobrecarga de ferro.
Além da investigação genética, exames laboratoriais periódicos, como a saturação de transferrina e a ferritina sérica, conseguem auxiliar na detecção precoce da doença em parentes de primeiro grau. Um ponto de alerta é que o tratamento inadequado pode levar a complicações sistêmicas devido ao depósito progressivo de ferro nos tecidos e órgãos.
As manifestações clínicas variam conforme a gravidade da sobrecarga férrica e o tempo de exposição ao ferro em excesso. A seguir, apresentamos uma revisão das principais complicações associadas à sobrecarga de ferro.
Principais complicações associadas à sobrecarga de ferro
As complicações hepáticas representam uma das maiores consequências da hemocromatose. A cirrose hepática é frequente em pacientes com ferritina superior a 1.000 ng/mL, aumentando significativamente o risco de carcinoma hepatocelular. O monitoramento da função hepática e a realização de exames de imagem são determinantes para a detecção precoce dessas complicações.
O diabetes mellitus é outra manifestação relevante, resultante da deposição de ferro nas células beta pancreáticas, levando à disfunção da secreção de insulina. Essa condição está presente em uma parcela substancial dos pacientes com hemocromatose não tratada e pode agravar o quadro metabólico geral.
As complicações articulares também são frequentes, com a artropatia ferro-induzida podendo levar à osteoartrite prematura, principalmente em articulações metacarpofalângicas. Muitas vezes, essa manifestação articular pode ser um dos primeiros sinais clínicos da doença e deve ser investigada quando associada a alterações nos níveis de ferro.
A cardiomiopatia associada à sobrecarga férrica pode levar à insuficiência cardíaca progressiva, sendo uma complicação grave e potencialmente fatal da hemocromatose. O depósito de ferro no miocárdio afeta a função cardíaca, podendo resultar em arritmias e falência cardíaca congestiva.
O hipogonadismo pode ocorrer em virtude da deposição de ferro na hipófise, resultando em disfunção testicular nos homens ou ovariana nas mulheres. Isso pode levar a sintomas como impotência, amenorreia e infertilidade.
Manejo da hemocromatose para prevenir complicações
O manejo da hemocromatose tem como objetivo primordial prevenir complicações graves, como cirrose hepática, diabetes e alterações osteoarticulares, por meio do diagnóstico precoce e do tratamento adequado. A redução dos níveis de ferro no organismo evita a progressão da doença e minimiza os impactos da sobrecarga férrica nos órgãos-alvo, melhorando a qualidade de vida dos pacientes.
A flebotomia é o tratamento padrão para a remoção do ferro excedente. O procedimento consiste na retirada de aproximadamente 500 mL de sangue, inicialmente em sessões semanais, até que a ferritina atinja valores próximos a 50 ng/mL. Após essa fase, as flebotomias passam a ser feitas de maneira periódica e individualizada, conforme a necessidade do paciente, garantindo o controle dos estoques de ferro no decorrer do tempo.
O monitoramento regular da ferritina sérica e da saturação de transferrina é crucial para ajustar a frequência das flebotomias e evitar recargas de ferro. Adicionalmente, a triagem familiar e o aconselhamento genético são indicados para parentes de primeiro grau de indivíduos diagnosticados com hemocromatose, permitindo o acompanhamento precoce e a prevenção de complicações antes do desenvolvimento de manifestações clínicas.
Paralelamente ao tratamento com flebotomias, o consumo de bebidas alcoólicas deve ser reduzido, especialmente em pacientes com acometimento hepático, tendo em vista que o álcool pode agravar o estresse oxidativo e acelerar a progressão da doença hepática.
Com o manejo adequado da hemocromatose, é possível reduzir os riscos associados à sobrecarga de ferro e melhorar o prognóstico dos pacientes. A combinação de exames laboratoriais, testes genéticos e exames de imagem propicia a intervenção antes do desenvolvimento de manifestações clínicas irreversíveis.
Para aprofundar seus conhecimentos sobre exames laboratoriais e interpretação diagnóstica, leia o conteúdo “Interpretação do hemograma na prática médica”.
Referências:
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