A hipovitaminose D representa uma condição clínica de alta relevância na prática pediátrica, especialmente por sua associação com desfechos negativos no crescimento, na saúde óssea e na modulação da resposta imune durante a infância e a adolescência. Evidências apontam que a deficiência de vitamina D nessa população está diretamente relacionada a quadros como raquitismo, infecções respiratórias de repetição, maior predisposição a doenças autoimunes, alergias e alterações no metabolismo mineral ósseo.
Diante desse cenário, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), por meio do Departamento Científico de Endocrinologia, atualizou suas diretrizes para diagnóstico, prevenção e manejo da hipovitaminose D em crianças e adolescentes. O novo documento consiste em uma revisão crítica das práticas vigentes, propondo ajustes nos critérios laboratoriais e nas estratégias terapêuticas, com base na melhor evidência científica disponível.
A seguir, apresentamos os principais pontos da atualização e suas implicações para a prática médica.
Critérios para o rastreamento da hipovitaminose D
Com foco na individualização da conduta e na segurança clínica, as novas recomendações da SBP visam reduzir o subdiagnóstico em populações vulneráveis, ao mesmo tempo em que alertam para os riscos do uso indiscriminado e não supervisionado de suplementos de vitamina D, uma prática ainda recorrente em diversas realidades assistenciais do país.
A diretriz abandona a recomendação de triagem universal dos níveis séricos de vitamina D em crianças e adolescentes saudáveis, optando por uma abordagem seletiva, centrada em indivíduos com sinais clínicos sugestivos de deficiência ou pertencentes a grupos de risco. Ainda, a decisão visa evitar a medicalização excessiva da infância, diminuindo a realização de exames laboratoriais desnecessários e o início de suplementações sem respaldo clínico.
Entre os grupos elegíveis para rastreamento com dosagem de 25-hidroxivitamina D [25(OH)D], destacam-se crianças com doenças inflamatórias intestinais, obesidade, doenças renais e hepáticas crônicas, síndromes genéticas que afetam o metabolismo ósseo, bem como usuários crônicos de anticonvulsivantes, corticoides sistêmicos e antirretrovirais. Pacientes com suspeita clínica de raquitismo também devem ser investigados.
Novas recomendações para suplementação e interpretação laboratorial
A diretriz atual aponta para a suplementação empírica de vitamina D em grupos específicos, mesmo na ausência de exames laboratoriais prévios. Essa orientação aplica-se a lactentes, gestantes, adolescentes com fatores de risco, idosos com mais de 75 anos e pessoas em situações clínicas com impacto expressivo na morbidade pediátrica.
Outro aspecto importante diz respeito à interpretação laboratorial da vitamina D. A dosagem da fração ativa, 1,25-diidroxivitamina D [1,25(OH)₂D], não deve ser utilizada para diagnóstico, pois está sujeita à interferência de variáveis como paratormônio (PTH), cálcio e fósforo séricos, o que compromete sua confiabilidade como marcador de reserva corporal.
Quanto aos valores de referência, a SBP recomenda que crianças e adolescentes em grupos de risco mantenham níveis de 25(OH)D entre 30 e 60 ng/mL. Valores abaixo de 20 ng/mL indicam deficiência e exigem investigação complementar de raquitismo, com exames bioquímicos e, quando necessário, radiografia de ossos longos. Entre os achados sugestivos da doença, estão: alargamento metafisário; alterações costocondrais; fraturas em galho verde; e deformidades ósseas, principalmente em membros inferiores.
Estratégias terapêuticas para a prevenção da hipovitaminose D
No que se refere ao tratamento e à prevenção da hipovitaminose D, a nova diretriz da SBP mantém a preferência pelo colecalciferol (vitamina D3), que apresenta maior biodisponibilidade e meia-vida mais longa, em comparação ao ergocalciferol (vitamina D2). As doses recomendadas foram revisadas e seguem critérios de idade e risco clínico.
Para lactentes menores de um ano, a dose diária de 400 UI de vitamina D3 continua sendo a indicação padrão. Crianças e adolescentes entre um e 18 anos devem receber 600 UI/dia, desde que não estejam em grupos de risco. Para pacientes com condições clínicas que aumentam a suscetibilidade à deficiência, como os mencionados no rastreamento, as doses devem ser ajustadas entre 1.200 e 1.800 UI/dia, de forma individualizada e com acompanhamento laboratorial periódico.
A diretriz destaca, ainda, a importância de evitar o uso de megadoses de vitamina D em regimes prolongados. A prática, embora comum em anos anteriores, tem sido cada vez mais desaconselhada por causa do risco de hipervitaminose D, hipercalcemia, nefrocalcinose e outras manifestações tóxicas, que podem comprometer a saúde renal e óssea do paciente. O uso de doses elevadas deve ser reservado a situações específicas, com indicações claras e monitoramento rigoroso.
O consenso de 2024 da Endocrine Society também recomenda a suplementação rotineira com vitamina D até os 18 anos, com o objetivo de prevenir o raquitismo nutricional e reduzir o risco de infecções respiratórias. Entretanto, enfatiza que a dose deve ser segura, eficaz e baseada no perfil clínico do paciente, sem exceder os limites superiores de ingestão estabelecidos pelas agências reguladoras.
Racionalidade, segurança e personalização no manejo da vitamina D
As atualizações vistas são um avanço significativo no alinhamento das condutas clínicas com as evidências mais robustas disponíveis. A transição de uma abordagem de rastreamento universal para uma triagem seletiva — baseada em risco clínico e sintomas — demonstra preocupação ética com a racionalidade médica e a segurança do paciente.
Apesar de a suplementação preventiva com vitamina D continuar sendo uma estratégia válida, sobretudo em lactentes e populações de risco, sua condução deve ser feita com ainda mais cautela, evitando excessos que podem gerar efeitos adversos relevantes. Assim, a individualização do cuidado, associada ao uso criterioso de exames laboratoriais, é essencial para garantir que o benefício da suplementação supere qualquer risco potencial.
Por fim, cabe reforçar que a avaliação periódica dos níveis de vitamina D, quando indicada, deve ser integrada ao acompanhamento global da criança e do adolescente, considerando fatores ambientais, alimentares e genéticos. A educação médica contínua sobre o tema também é importantíssima para evitar a banalização da prescrição e para promover uma pediatria baseada em evidências, segurança e efetividade.
Continue aprofundando seu conhecimento! Acesse nosso conteúdo sobre medicina de precisão na investigação de baixa estatura e atualize-se sobre como as abordagens diagnósticas personalizadas podem melhorar o acompanhamento pediátrico.
Referências:
Demay MB, Pittas AG, Bikle DD, et al. Vitamin D for the Prevention of Disease: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2024;109(8):1907-1947. doi:10.1210/clinem/dgae290
Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Diretrizes clínicas para diagnóstico, tratamento e prevenção da hipovitaminose D em crianças e adolescentes – atualização. Departamento Científico de Endocrinologia. SBP; 2024. 24540j-DC HipovitD_diagn-tratam-prevenç Atualiz.indd


