A hemofilia é uma doença antiga que remonta ao século II d.C., quando surgiram os primeiros relatos da condição atribuídos ao povo judeu. Na época, eventualmente, ocorriam mortes por hemorragia após a realização da circuncisão, uma cerimônia religiosa tradicional no judaísmo.
Embora os judeus não soubessem nada sobre a hemofilia na época e qual a sua causa, eles perceberam que o problema hemorrágico poderia ter um componente familiar. Hoje, sabemos que a hemofilia é uma doença genética e hereditária, reconhecida como um distúrbio hemorrágico desencadeado pela deficiência de fatores de coagulação, resultando em sangramentos de difícil controle.
Para esclarecer mais sobre o assunto, realizamos uma entrevista com a Dra. Silvana Fahel, hematologista, professora da Universidade de Brasília (UnB) e médica do Grupo Sabin. Acompanhe!
O que é a hemofilia?
A hemofilia é uma doença genética em que há um distúrbio na coagulação sanguínea, sendo considerada uma coagulopatia hereditária. A dificuldade nos mecanismos de coagulação e a facilidade na apresentação de eventos hemorrágicos ocorrem devido à deficiência de fatores da coagulação.
Os fatores de coagulação são proteínas encontradas no sangue, que desempenham um papel fundamental no processo de coagulação sanguínea. Eles são responsáveis por formar coágulos, impedindo o sangramento excessivo quando ocorre uma lesão nos vasos sanguíneos.
Existem 13 fatores de coagulação diferentes, numerados de I a XIII. Esses fatores atuam em uma sequência complexa de eventos conhecida como cascata de coagulação. Quando uma lesão ocorre em um vaso sanguíneo, a cascata de coagulação é ocasionada, levando à ativação sequencial desses fatores. A ativação ocorre por meio de uma série de reações bioquímicas, resultando na formação de fibrina, uma proteína insolúvel que forma uma rede de suporte, agregando plaquetas e formando um coágulo para estancar o sangramento.
Portanto, os fatores de coagulação são vitais para a manutenção da integridade do sistema circulatório. Se houver uma deficiência ou disfunção em qualquer um desses fatores, pode ocorrer um distúrbio de coagulação, levando a problemas como hemorragias excessivas ou propensão à formação de coágulos indesejados, o que pode resultar em condições médicas graves, como é o caso da hemofilia.
Como se classificam as hemofilias?
Conforme explica a Dra. Silvana, “as hemofilias podem ser classificadas em A ou B, de acordo com o fator de coagulação que está deficiente”. Na hemofilia A, ocorre a deficiência do fator de coagulação VIII, enquanto a hemofilia B está ligada a prejuízos no fator IX da cascata de coagulação.
A hemofilia A é mais prevalente quando comparada ao tipo B (80% a 85% da população total portadora de hemofilia). Pode ser classificada, ainda, de acordo com o grau da deficiência: hemofilia leve, quando há 5% a 40% de atividade dos fatores VIII ou IX; hemofilia moderada, quando há 1% a 5% de atividade; e hemofilia grave, quando menos de 1% dos fatores mencionados possui real atuação na coagulação do paciente.
Segundo estudos epidemiológicos, a hemofilia distribui-se igualmente entre todos os grupos étnicos, possuindo uma frequência de incidência aproximada de uma a cada dez mil pessoas. Globalmente, estima-se que o número de pessoas vivendo com hemofilia é de cerca de 4 milhões. No Brasil, dados do Sistema Hemovida Web Coagulopatias do Ministério da Saúde (MS) indicam que existem mais de 13 mil pessoas diagnosticadas com hemofilia.
Como ocorre esse distúrbio genético?
A hemofilia é uma condição genética de herança recessiva ligada ao cromossomo X, pois os genes dos fatores VIII e IX estão localizados nesse cromossomo. Para ocorrer a hemofilia, é necessário que o gene do fator VIII (hemofilia A) ou IX (hemofilia B) apresente uma variante (mutação) que leva à diminuição de atividade, respectivamente, dos fatores VIII ou IX.
Como os homens têm apenas um cromossomo X (XY), uma mutação no gene do fator de coagulação no cromossomo X resultará na manifestação da hemofilia (genótipo XhY).
Por outro lado, como as mulheres possuem dois cromossomos X, se elas tiverem um cromossomo associado à variante da hemofilia e outro normal (XhX), serão apenas portadoras da mutação. Para desenvolver a hemofilia, as mulheres necessitam ter os dois alelos para o fator IX ou VIII com a variante (XhXh), por isso é muito mais raro.
“A mulher portadora (XhX) tem 50% de probabilidade de transmitir o alelo anormal aos seus descendentes, em cada gestação. Além disso, aproximadamente 30% dos hemofílicos não apresenta histórico familiar, o que configura a ocorrência de mutações espontâneas”, ressalta a hematologista.
Quais os principais sintomas da hemofilia?
Os principais sintomas apresentados por uma pessoa com hemofilia são os sangramentos. Sangramentos externos visíveis, como as manchas roxas (equimoses, hematomas), sangramentos nasais, gengivais e também internos, como os articulares (chamados hemartroses), são muito frequentes, principalmente em joelhos, tornozelos, cotovelos e em outros locais, como o sistema nervoso, o abdômen, entre outros.
Sangramentos mais intensos que o esperado podem surgir nas seguintes situações:
- após um trauma;
- tratamento dentário;
- em cirurgias, em casos de hemofilias mais leves;
- espontaneamente, em casos de hemofilia grave.
As crianças com hemofilia grave apresentam precocemente equimoses e hematomas espontâneos em locais geralmente não expostos a traumas ou após pequenos traumas, como joelhos e cotovelos, quando começam a engatinhar.
Como é feito o diagnóstico da hemofilia?
A pesquisa da hemofilia se baseia, inicialmente, no exame clínico e na análise do histórico familiar do paciente. Caso haja suspeita de hemofilia, o médico especialista deverá solicitar uma avaliação da coagulação sanguínea por meio de um coagulograma, exame que avalia diferentes parâmetros importantes, como o tempo de tromboplastina parcialmente ativada (TTPa) e o tempo de protrombina (TP), que são indicadores da coagulação efetiva ou não.
Dra. Silvana esclarece que “o diagnóstico da hemofilia deve ser cogitado sempre que há histórias pregressas de sangramentos espontâneos ou após traumas”.
Na hemofilia é comumente possível observar um aumento no TTPa e no TP normal. Para a confirmação diagnóstica, é feita a dosagem da atividade coagulante do fator VIII (hemofilia A) ou fator IX (hemofilia B). Adicionalmente, pode ser solicitada a pesquisa genética, uma vez que, em caso afirmativo para histórico familiar, pode ser feito o aconselhamento genético para casais que desejam ter filhos e para estimar os riscos de transmissão hereditária da doença.
É importante também realizar o diagnóstico diferencial, pois existem outras condições de saúde que podem se manifestar com sangramento na pele e mucosas, como a doença de von Willebrand, condição na qual o fator de von Willebrand está deficiente no paciente. Esse fator é uma proteína presente no sangue que ajuda a conectar as plaquetas ao tecido lesionado, auxiliando a estancar o sangramento.
Existe tratamento para a hemofilia?
No Brasil, todos os pacientes com hemofilia têm direito a receber o tratamento gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar de não existir cura, o tratamento da hemofilia tem evoluído muito nas últimas décadas, especialmente com o advento das terapias gênicas, as quais podem, potencialmente, ser uma esperança de cura no futuro.
Antigamente, a terapêutica consistia na reposição do fator deficiente, sob a forma de crioprecipitados (em bolsas de transfusão, proibidas a partir de 2002), que foram substituídos por concentrados de fator recombinantes. A reposição do fator deficiente de curta duração (máximo 72 horas) também evoluiu e, atualmente, utilizam-se fatores de coagulação de ação estendida, com até 10 dias de duração.
A instituição da profilaxia, o tratamento domiciliar e no trabalho e a implantação do tratamento de imunotolerância (eliminação do inibidor) têm transformado a vida das pessoas com hemofilia, melhorando a qualidade de vida e mitigando a ocorrência de possíveis complicações e sequelas.
Por fim, vale destacar a importância do diagnóstico precoce. Quanto mais cedo a condição for identificada, melhor será o seu tratamento. Episódios de sangramento devem receber tratamento o mais depressa possível para evitar as sequelas musculares e articulares.
Pais devem ficar alerta e procurar assistência médica caso a criança apresente sangramentos frequentes e desproporcionais ao tamanho do trauma. O surgimento de manchas roxas que aparecem no bebê, quando batem nas grades do berço, por exemplo, podem ser um sinal de alerta para o diagnóstico da hemofilia.
Mesmo considerando sua gravidade, a hemofilia é uma condição que pode ser tratada. Com o devido manejo, a pessoa portadora pode ter uma excelente qualidade de vida.
Outra doença sanguínea hereditária de grande relevância é a talassemia, uma condição causada por mutações nos genes da globina que leva a alterações na produção dessa proteína nas hemácias, os glóbulos vermelhos do sangue. Quer saber mais informações sobre a talassemia? Então, não deixe de acessar o conteúdo sobre essa importante doença em nosso blog!
Sabin avisa:
Este conteúdo é meramente informativo e não pretende substituir consultas médicas, avaliações por profissionais de saúde ou fornecer qualquer tipo de diagnóstico ou recomendação de exames.
Importante ressaltar que diagnósticos e tratamentos devem ser sempre indicados por uma avaliação médica individual. Em caso de dúvidas, converse com seu médico. Somente o profissional pode esclarecer todas as suas perguntas.
Lembre-se: qualquer decisão relacionada à sua saúde sem orientação profissional pode ser prejudicial.
Referências:
Berntorp, E., Fischer, K., Hart, D.P. et al. Haemophilia. Nat Rev Dis Primers 7, 45 (2021). https://doi.org/10.1038/s41572-021-00278-xMehta P, Reddivari AKR. Hemophilia. [Updated 2023 Jun 5]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2024 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK551607/