Sabin Por: Sabin
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A autoimunidade induzida por drogas (AID) é um fenômeno complexo que envolve uma reação idiossincrática do sistema imunológico a determinados medicamentos, levando à ativação e produção de anticorpos contra tecidos do próprio organismo. 

Esse processo pode desencadear uma variedade de doenças autoimunes, como o lúpus induzido por drogas (LID). Estudos epidemiológicos sugerem que uma proporção considerável de casos de doenças autoimunes esteja associada ao uso de medicamentos. Além disso, o diagnóstico da AID é desafiador devido à variedade de apresentações e sobreposição de sintomas com outras condições clínicas.

Neste conteúdo, aprofundamos alguns conceitos relacionados à AID, quais as doenças associadas e como realizar o diagnóstico dessa condição. Confira!

O que é a autoimunidade induzida por drogas?

A AID é uma resposta imunológica peculiar desencadeada pela exposição a determinados medicamentos, que geralmente se resolve com a interrupção do uso dessas substâncias.

Diferentemente das reações do tipo A, previsíveis e relacionadas diretamente aos efeitos farmacológicos do medicamento em questão, a AID pertence à categoria de reações medicamentosas tipo B, caracterizadas pela imprevisibilidade e influenciadas por uma série de fatores, como a predisposição genética do paciente, seu estado de saúde geral, doenças concomitantes e interações medicamentosas.

Mais de 100 fármacos diferentes já foram associados ao desenvolvimento de alterações autoimunes. Esses medicamentos estão distribuídos em várias classes terapêuticas, incluindo antialérgicos, antibióticos, antiarrítmicos, anti-hipertensivos, estatinas, anticonvulsivantes, antipsicóticos e outros. Especialmente relevante para os reumatologistas são os grupos que incluem anti-inflamatórios e agentes biológicos, frequentemente utilizados no tratamento de condições autoimunes.

Entre os medicamentos associados ao maior risco de desencadear AID, destacam-se a procainamida e a hidralazina. Estudos apontam que aproximadamente 20% dos pacientes em terapia com procainamida desenvolvem lúpus durante o primeiro ano de tratamento, enquanto a incidência de lúpus induzido por hidralazina situa-se em torno de 5% a 8%. Outros medicamentos são geralmente classificados como de baixo ou muito baixo risco, com exceção da quinidina, que apresenta uma incidência menor que 1%.

A compreensão dos mecanismos subjacentes à AID e a identificação dos fatores de risco associados são cruciais para garantir a segurança dos pacientes em tratamento farmacológico. Adicionalmente, o monitoramento cuidadoso durante a administração de medicamentos de maior risco e a pronta intervenção ao primeiro sinal de reações adversas autoimunes são essenciais para minimizar as chances de desenvolvimento de AID e assegurar a eficácia do tratamento.

Quais as doenças mais comumente associadas?

Entre as doenças associadas à AID, sem dúvidas, o LID é um exemplo clássico, sendo uma forma mundialmente reconhecida de doença autoimune induzida por iatrogenia. Nos EUA, estima-se que ocorram entre 15 a 30 mil casos de lúpus eritematoso sistêmico (LES) por ano, e o uso de certos medicamentos pode estar implicado em 10% desses casos.

Pesquisas apontam, ainda, que cerca de 10% dos casos de vasculites cutâneas podem estar atribuídos à influência de medicamentos, com as erupções purpúricas e maculopapulares configurando como as mais frequentes.

Outras condições autoimunes também já foram associadas à AID, tais como:

  • artrite reumatoide;
  • dermatopolimiosite;
  • hepatite autoimune;
  • anemia hemolítica;
  • síndrome de Sjögren;
  • miastenia grave;
  • pênfigo;
  • glomerulonefrite membranosa.

É provável que, em média, 100 condições autoimunes, abrangendo várias especialidades médicas, possam ser relacionadas ao uso de drogas terapêuticas.

Quais as alterações clínicas mais comuns na autoimunidade induzida por drogas?

A AID pode apresentar uma variedade de manifestações clínicas, incluindo manifestações constitucionais como febre, fadiga e perda de peso, além de sintomas como artralgias, artrite, mialgias, serosite e erupções cutâneas. A depender de características inerentes ao paciente e à droga, pode ser necessário investigar também a presença de sintomas cardiovasculares, gastrointestinais, neurológicos, hematológicos e renais. 

Pensando no lúpus como uma doença associada ao uso de alguns medicamentos, algumas diferenças clínicas importantes devem ser salientadas entre a versão induzida por drogas (LID) e o LES idiopático.

Em primeiro lugar, enquanto o LES idiopático possui uma proporção de 1:9 entre homens e mulheres, no LID, observa-se apenas uma leve predominância nas mulheres. Ademais, o LID tende a ocorrer em pessoas mais velhas em comparação com o LES idiopático, com uma exceção notável no caso do lúpus induzido por minociclina, que tem uma incidência significativamente maior em mulheres e pacientes mais jovens.

Quanto à sintomatologia, apesar dos pacientes com LID compartilharem muitos dos mesmos sintomas do LES idiopático, os sintomas costumam ser mais brandos em intensidade no LID. Manifestações cutâneas, como a erupção malar típica, fotossensibilidade e úlceras orais, são menos comuns no LID do que no LES idiopático.

Cabe destacar que a apresentação clínica do LID pode ser extremamente variável, dependendo da droga que o desencadeia e das características individuais do paciente, tornando a definição de critérios diagnósticos mais complicada.

No entanto, há sintomas comuns que o clínico pode observar. Por exemplo, os sintomas típicos do lúpus induzido por procainamida e hidralazina incluem artralgias, mialgias e sintomas constitucionais, como febre, erupção cutânea e pleurisia. Porém, a pleurisia e a pericardite são mais frequentemente relatadas no grupo da procainamida, enquanto as manifestações dermatológicas são mais comuns no grupo da hidralazina.

Abordagem diagnóstica

Como mencionado, a AID apresenta um desafio diagnóstico significativo, em razão da variedade de manifestações clínicas e da necessidade de estabelecer uma relação temporal entre a administração da droga e o surgimento dos sintomas.

A obtenção de uma história clínica minuciosa é fundamental para o diagnóstico preciso da AID. É preciso observar se há melhora clínica com a suspensão do medicamento ou reaparecimento dos sintomas com sua reintrodução. Além disso, o histórico pessoal e familiar do paciente relacionado a doenças reumáticas e outras condições autoimunes pode ajudar a distinguir a AID de exacerbações de enfermidades preexistentes.

Os exames laboratoriais desempenham um papel relevante na avaliação diagnóstica da AID. Os autoanticorpos são marcadores importantes e sua presença pode fortalecer a suspeita diagnóstica. Entre os testes laboratoriais indicados para o diagnóstico da AID, destacam-se:

  • dosagem do fator antinuclear (FAN);
  • pesquisa de anti-histona, antinucleossoma, anti-DNA, anti-ENA;
  • fator reumatoide;
  • anticardiolipina;
  • anticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA).

Exames como hemograma, VHS, PCR, enzimas hepáticas, complemento e histopatológico de lesões cutâneas também são importantes para o diagnóstico diferencial com outras condições clínicas.

No caso específico da AID induzida por drogas, a detecção de anticorpos anti-histona, com FAN reagente de padrão homogêneo, é um aspecto característico que merece atenção especial.

Considere notar que a presença de autoanticorpos nem sempre está associada ao desenvolvimento de manifestações clínicas da AID, pois as alterações sorológicas podem ser mais prevalentes do que as manifestações clínicas. Da mesma forma, os pacientes podem apresentar sintomas de autoimunidade sem a presença de autoanticorpos detectáveis.

Em resumo, a abordagem diagnóstica da AID requer uma avaliação multidisciplinar que integre informações clínicas, histórico medicamentoso detalhado e resultados de exames laboratoriais. A identificação precoce e precisa da AID é primordial para proporcionar uma intervenção terapêutica adequada e melhorar os resultados clínicos do paciente.

Quer continuar se atualizando e aprofundando seus conhecimentos acerca de condições autoimunes? Sugerimos a leitura do conteúdo sobre como investigar doenças reumáticas autoimunes. No texto, são levantados pontos de extrema importância para o raciocínio clínico e, consequentemente, a adoção de uma abordagem terapêutica eficaz. Boa leitura!

Referências:

Dedeoglu, F. Drug-induced autoimmunity. Current Opinion in Rheumatology 21(5):p 547-551, September 2009.  doi: 10.1097/BOR.0b013e32832f13db

Xiao X, Chang C. Diagnosis and classification of drug-induced autoimmunity (DIA). J Autoimmun. 2014 Feb-Mar;48-49:66-72. doi: 10.1016/j.jaut.2014.01.005

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Diagnóstico de autoimunidade induzida por drogas; A autoimunidade induzida por drogas (AID) é um fenômeno complexo que envolve uma reação idiossincrática do sistema imunológico a determinados medicamentos, levando à ativação e produção de anticorpos contra tecidos do próprio organismo.  Esse processo pode desencadear uma variedade de doenças autoimunes, como o lúpus induzido por drogas (LID). Estudos epidemiológicos sugerem que uma proporção considerável de casos de doenças autoimunes esteja associada ao uso de medicamentos. Além disso, o diagnóstico da AID é desafiador devido à variedade de apresentações e sobreposição de sintomas com outras condições clínicas. Neste conteúdo, aprofundamos alguns conceitos relacionados à AID, quais as doenças associadas e como realizar o diagnóstico dessa condição. Confira! O que é a autoimunidade induzida por drogas? A AID é uma resposta imunológica peculiar desencadeada pela exposição a determinados medicamentos, que geralmente se resolve com a interrupção do uso dessas substâncias. Diferentemente das reações do tipo A, previsíveis e relacionadas diretamente aos efeitos farmacológicos do medicamento em questão, a AID pertence à categoria de reações medicamentosas tipo B, caracterizadas pela imprevisibilidade e influenciadas por uma série de fatores, como a predisposição genética do paciente, seu estado de saúde geral, doenças concomitantes e interações medicamentosas. Mais de 100 fármacos diferentes já foram associados ao desenvolvimento de alterações autoimunes. Esses medicamentos estão distribuídos em várias classes terapêuticas, incluindo antialérgicos, antibióticos, antiarrítmicos, anti-hipertensivos, estatinas, anticonvulsivantes, antipsicóticos e outros. Especialmente relevante para os reumatologistas são os grupos que incluem anti-inflamatórios e agentes biológicos, frequentemente utilizados no tratamento de condições autoimunes. Entre os medicamentos associados ao maior risco de desencadear AID, destacam-se a procainamida e a hidralazina. Estudos apontam que aproximadamente 20% dos pacientes em terapia com procainamida desenvolvem lúpus durante o primeiro ano de tratamento, enquanto a incidência de lúpus induzido por hidralazina situa-se em torno de 5% a 8%. Outros medicamentos são geralmente classificados como de baixo ou muito baixo risco, com exceção da quinidina, que apresenta uma incidência menor que 1%. A compreensão dos mecanismos subjacentes à AID e a identificação dos fatores de risco associados são cruciais para garantir a segurança dos pacientes em tratamento farmacológico. Adicionalmente, o monitoramento cuidadoso durante a administração de medicamentos de maior risco e a pronta intervenção ao primeiro sinal de reações adversas autoimunes são essenciais para minimizar as chances de desenvolvimento de AID e assegurar a eficácia do tratamento. Quais as doenças mais comumente associadas? Entre as doenças associadas à AID, sem dúvidas, o LID é um exemplo clássico, sendo uma forma mundialmente reconhecida de doença autoimune induzida por iatrogenia. Nos EUA, estima-se que ocorram entre 15 a 30 mil casos de lúpus eritematoso sistêmico (LES) por ano, e o uso de certos medicamentos pode estar implicado em 10% desses casos. Pesquisas apontam, ainda, que cerca de 10% dos casos de vasculites cutâneas podem estar atribuídos à influência de medicamentos, com as erupções purpúricas e maculopapulares configurando como as mais frequentes. Outras condições autoimunes também já foram associadas à AID, tais como: artrite reumatoide; dermatopolimiosite; hepatite autoimune; anemia hemolítica; síndrome de Sjögren; miastenia grave; pênfigo; glomerulonefrite membranosa. É provável que, em média, 100 condições autoimunes, abrangendo várias especialidades médicas, possam ser relacionadas ao uso de drogas terapêuticas. Quais as alterações clínicas mais comuns na autoimunidade induzida por drogas? A AID pode apresentar uma variedade de manifestações clínicas, incluindo manifestações constitucionais como febre, fadiga e perda de peso, além de sintomas como artralgias, artrite, mialgias, serosite e erupções cutâneas. A depender de características inerentes ao paciente e à droga, pode ser necessário investigar também a presença de sintomas cardiovasculares, gastrointestinais, neurológicos, hematológicos e renais.  Pensando no lúpus como uma doença associada ao uso de alguns medicamentos, algumas diferenças clínicas importantes devem ser salientadas entre a versão induzida por drogas (LID) e o LES idiopático. Em primeiro lugar, enquanto o LES idiopático possui uma proporção de 1:9 entre homens e mulheres, no LID, observa-se apenas uma leve predominância nas mulheres. Ademais, o LID tende a ocorrer em pessoas mais velhas em comparação com o LES idiopático, com uma exceção notável no caso do lúpus induzido por minociclina, que tem uma incidência significativamente maior em mulheres e pacientes mais jovens. Quanto à sintomatologia, apesar dos pacientes com LID compartilharem muitos dos mesmos sintomas do LES idiopático, os sintomas costumam ser mais brandos em intensidade no LID. Manifestações cutâneas, como a erupção malar típica, fotossensibilidade e úlceras orais, são menos comuns no LID do que no LES idiopático. Cabe destacar que a apresentação clínica do LID pode ser extremamente variável, dependendo da droga que o desencadeia e das características individuais do paciente, tornando a definição de critérios diagnósticos mais complicada. No entanto, há sintomas comuns que o clínico pode observar. Por exemplo, os sintomas típicos do lúpus induzido por procainamida e hidralazina incluem artralgias, mialgias e sintomas constitucionais, como febre, erupção cutânea e pleurisia. Porém, a pleurisia e a pericardite são mais frequentemente relatadas no grupo da procainamida, enquanto as manifestações dermatológicas são mais comuns no grupo da hidralazina. Abordagem diagnóstica Como mencionado, a AID apresenta um desafio diagnóstico significativo, em razão da variedade de manifestações clínicas e da necessidade de estabelecer uma relação temporal entre a administração da droga e o surgimento dos sintomas. A obtenção de uma história clínica minuciosa é fundamental para o diagnóstico preciso da AID. É preciso observar se há melhora clínica com a suspensão do medicamento ou reaparecimento dos sintomas com sua reintrodução. Além disso, o histórico pessoal e familiar do paciente relacionado a doenças reumáticas e outras condições autoimunes pode ajudar a distinguir a AID de exacerbações de enfermidades preexistentes. Os exames laboratoriais desempenham um papel relevante na avaliação diagnóstica da AID. Os autoanticorpos são marcadores importantes e sua presença pode fortalecer a suspeita diagnóstica. Entre os testes laboratoriais indicados para o diagnóstico da AID, destacam-se: dosagem do fator antinuclear (FAN); pesquisa de anti-histona, antinucleossoma, anti-DNA, anti-ENA; fator reumatoide; anticardiolipina; anticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA). Exames como hemograma, VHS, PCR, enzimas hepáticas, complemento e histopatológico de lesões cutâneas também são importantes para o diagnóstico diferencial com outras condições clínicas. No caso específico da AID induzida por drogas, a detecção de anticorpos anti-histona, com FAN reagente de padrão homogêneo, é um aspecto característico que merece atenção especial. Considere notar que a presença de autoanticorpos nem sempre está associada ao desenvolvimento de manifestações clínicas da AID, pois as alterações sorológicas podem ser mais prevalentes do que as manifestações clínicas. Da mesma forma, os pacientes podem apresentar sintomas de autoimunidade sem a presença de autoanticorpos detectáveis. Em resumo, a abordagem diagnóstica da AID requer uma avaliação multidisciplinar que integre informações clínicas, histórico medicamentoso detalhado e resultados de exames laboratoriais. A identificação precoce e precisa da AID é primordial para proporcionar uma intervenção terapêutica adequada e melhorar os resultados clínicos do paciente. Quer continuar se atualizando e aprofundando seus conhecimentos acerca de condições autoimunes? Sugerimos a leitura do conteúdo sobre como investigar doenças reumáticas autoimunes. No texto, são levantados pontos de extrema importância para o raciocínio clínico e, consequentemente, a adoção de uma abordagem terapêutica eficaz. Boa leitura! Referências: Dedeoglu, F. Drug-induced autoimmunity. Current Opinion in Rheumatology 21(5):p 547-551, September 2009.  doi: 10.1097/BOR.0b013e32832f13db Xiao X, Chang C. Diagnosis and classification of drug-induced autoimmunity (DIA). J Autoimmun. 2014 Feb-Mar;48-49:66-72. doi: 10.1016/j.jaut.2014.01.005