Sabin Por: Sabin
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No conteúdo de hoje, apresentaremos as principais atualizações propostas pelo novo consenso internacional publicado pela The Lancet Diabetes & Endocrinology, que redefine a forma como a obesidade deve ser diagnosticada e caracterizada na prática clínica.

Fruto de um extenso trabalho realizado entre 2022 e 2024, o documento reuniu 58 especialistas de diferentes países e áreas médicas, representando mais de 75 organizações científicas.

A proposta rompe com a abordagem tradicional baseada exclusivamente no Índice de Massa Corporal (IMC) e avança no reconhecimento da obesidade como uma condição clínica com manifestações próprias.

Continue a leitura para se atualizar e compreender os fundamentos que motivaram a revisão, os novos critérios diagnósticos e as implicações clínicas e políticas decorrentes dessa atualização.

O que motivou a revisão dos critérios diagnósticos?

A definição tradicional de obesidade, centrada no IMC, não oferece sensibilidade suficiente para diferenciar risco de adoecimento. O IMC é uma métrica útil para rastreamento populacional, mas falha em refletir a complexidade individual do excesso de adiposidade, como a distribuição da gordura corporal e seu impacto funcional sobre os tecidos e órgãos.

Esse modelo contribui tanto para o subdiagnóstico de pacientes que apresentam manifestações clínicas relevantes sem disfunções metabólicas marcantes, quanto para o sobrediagnóstico em indivíduos com IMC elevado e boa funcionalidade.

Diante disso, o novo consenso propõe uma reformulação diagnóstica mais precisa, capaz de distinguir entre diferentes estágios da doença e orientar condutas clínicas baseadas em evidências.

Obesidade como doença: do fator de risco à condição clínica

Outro ponto relevante é que o novo documento propõe uma mudança significativa no entendimento da obesidade. Em vez de ser apenas um fator de risco para doenças metabólicas, a obesidade passa a ser reconhecida formalmente como uma doença sistêmica crônica, com manifestações próprias de disfunção fisiológica.

No novo modelo, a obesidade clínica é definida como a condição em que o excesso de adiposidade resulta em alteração funcional de órgãos, tecidos ou do organismo como um todo. Já a obesidade pré-clínica refere-se ao estado de adiposidade aumentada com função de tecidos e órgãos preservada, mas com risco aumentado de progressão para a forma clínica.

Essa diferenciação é importantíssima para guiar estratégias clínicas distintas: monitoramento e prevenção na fase pré-clínica; tratamento estruturado e multidisciplinar na obesidade clínica.

Critérios diagnósticos propostos: além do IMC

Com base na nova definição, o diagnóstico de obesidade clínica requer dois passos principais:

1. Confirmação da presença de excesso de adiposidade – por métodos diretos, como absorciometria de dupla energia (DEXA), ou por critérios antropométricos complementares ao IMC (circunferência da cintura, razão cintura-altura ou cintura-quadril).

2. Evidência de disfunção funcional ou limitação da vida diária – seja por alterações documentadas em exames, presença de sinais/sintomas clínicos (dispneia, dor musculoesquelética, fadiga) ou restrição na execução de atividades básicas (vestir-se, caminhar, alimentar-se).

Alguns detalhamentos: indivíduos com IMC acima de 40 kg/m² podem ter o excesso de adiposidade presumido, sem necessidade de avaliação complementar. O IMC, no novo modelo, torna-se um parâmetro de triagem e vigilância populacional, e não mais critério isolado de diagnóstico.

Implicações clínicas e terapêuticas da nova definição

Com a incorporação dos critérios de funcionalidade e impacto clínico, os profissionais de saúde (médicos e nutricionistas, entre outros) passam a ter subsídios mais robustos para identificar precocemente os casos que demandam intervenção.

A obesidade clínica é, portanto, uma condição que exige tratamento direto, independentemente da presença de doenças metabólicas associadas, como diabetes mellitus tipo 2 ou dislipidemia.

Para os casos de obesidade pré-clínica, o foco recai sobre o monitoramento do estado geral, aconselhamento em saúde e, se necessário, intervenções preventivas personalizadas. Pacientes com obesidade clínica devem receber estratégias terapêuticas orientadas por diretrizes, que podem incluir mudanças comportamentais, farmacoterapia e, em casos selecionados, cirurgia bariátrica.

Essa abordagem promove um cuidado mais equânime e baseado na real complexidade do paciente, e não apenas na presença de comorbidades clássicas.

Obesidade clínica e obesidade metabolicamente não saudável

O ponto principal é que o modelo tradicional frequentemente confunde obesidade clínica com obesidade metabolicamente não saudável. Dessa forma, o novo consenso estabelece uma distinção clara entre as duas condições.

A obesidade clínica é caracterizada pela presença de sinais e sintomas de disfunção induzida pela adiposidade, mesmo na ausência de alterações laboratoriais relevantes. Por outro lado, a obesidade metabolicamente não saudável é uma subcategoria de risco cardiovascular, baseada em parâmetros bioquímicos (hiperglicemia, dislipidemia, hipertensão), porém não necessariamente indica disfunção funcional em outros sistemas.

Com isso, o modelo clínico proposto amplia a detecção de casos importantes que não seriam reconhecidos apenas por critérios metabólicos, como pacientes com apneia obstrutiva do sono, osteoartrite, incontinência urinária ou limitação funcional severa.

Consequências para políticas públicas e financiamento de tratamentos

O reconhecimento da obesidade clínica como uma doença autônoma impacta diretamente as políticas de saúde, sobretudo em relação à cobertura de tratamentos e à priorização de recursos.

Atualmente, muitas operadoras e sistemas públicos exigem a presença de comorbidades para indicar e custear intervenções, como a cirurgia bariátrica ou o uso de medicamentos antiobesidade.

Com a nova definição, pacientes com disfunções clínicas secundárias à obesidade poderiam se beneficiar de tratamentos específicos, mesmo sem apresentar doenças metabólicas formalmente diagnosticadas. Isso pode ampliar o acesso e contribuir para a redução de complicações futuras, além de estimular políticas de prevenção mais eficazes, baseadas em evidência científica e não em critérios arbitrários.

Próximos passos: implementação e desafios

A adoção ampla do novo modelo proposto pelo consenso dependerá da articulação entre sociedades médicas, serviços de saúde e gestores públicos. A capacitação de equipes assistenciais para utilizar ferramentas diagnósticas mais precisas, bem como a atualização de protocolos clínicos e critérios de cobertura, será fundamental para operacionalizar a mudança.

Além disso, o modelo contribui para combater o estigma associado à obesidade, ao reconhecer sua base multifatorial e seu impacto funcional, permitindo uma abordagem mais ética, centrada na funcionalidade e no bem-estar do paciente.

Quer continuar se atualizando sobre as implicações metabólicas da obesidade? Sugerimos a leitura do conteúdo: Distúrbios metabólicos após a cirurgia bariátrica.

Referências:

Rubino F, Cummings DE, Eckel RH, Cohen RV, Wilding JPH, Brown WA, et al.

Definition and diagnostic criteria of clinical obesity. Lancet Diabetes Endocrinol. 2025 Mar;13:221–262. doi:10.1016/S2213-8587(24)00316-4.

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Novas diretrizes redefinem o diagnóstico da obesidade clínica; No conteúdo de hoje, apresentaremos as principais atualizações propostas pelo novo consenso internacional publicado pela The Lancet Diabetes & Endocrinology, que redefine a forma como a obesidade deve ser diagnosticada e caracterizada na prática clínica. Fruto de um extenso trabalho realizado entre 2022 e 2024, o documento reuniu 58 especialistas de diferentes países e áreas médicas, representando mais de 75 organizações científicas. A proposta rompe com a abordagem tradicional baseada exclusivamente no Índice de Massa Corporal (IMC) e avança no reconhecimento da obesidade como uma condição clínica com manifestações próprias. Continue a leitura para se atualizar e compreender os fundamentos que motivaram a revisão, os novos critérios diagnósticos e as implicações clínicas e políticas decorrentes dessa atualização. O que motivou a revisão dos critérios diagnósticos? A definição tradicional de obesidade, centrada no IMC, não oferece sensibilidade suficiente para diferenciar risco de adoecimento. O IMC é uma métrica útil para rastreamento populacional, mas falha em refletir a complexidade individual do excesso de adiposidade, como a distribuição da gordura corporal e seu impacto funcional sobre os tecidos e órgãos. Esse modelo contribui tanto para o subdiagnóstico de pacientes que apresentam manifestações clínicas relevantes sem disfunções metabólicas marcantes, quanto para o sobrediagnóstico em indivíduos com IMC elevado e boa funcionalidade. Diante disso, o novo consenso propõe uma reformulação diagnóstica mais precisa, capaz de distinguir entre diferentes estágios da doença e orientar condutas clínicas baseadas em evidências. Obesidade como doença: do fator de risco à condição clínica Outro ponto relevante é que o novo documento propõe uma mudança significativa no entendimento da obesidade. Em vez de ser apenas um fator de risco para doenças metabólicas, a obesidade passa a ser reconhecida formalmente como uma doença sistêmica crônica, com manifestações próprias de disfunção fisiológica. No novo modelo, a obesidade clínica é definida como a condição em que o excesso de adiposidade resulta em alteração funcional de órgãos, tecidos ou do organismo como um todo. Já a obesidade pré-clínica refere-se ao estado de adiposidade aumentada com função de tecidos e órgãos preservada, mas com risco aumentado de progressão para a forma clínica. Essa diferenciação é importantíssima para guiar estratégias clínicas distintas: monitoramento e prevenção na fase pré-clínica; tratamento estruturado e multidisciplinar na obesidade clínica. Critérios diagnósticos propostos: além do IMC Com base na nova definição, o diagnóstico de obesidade clínica requer dois passos principais: 1. Confirmação da presença de excesso de adiposidade – por métodos diretos, como absorciometria de dupla energia (DEXA), ou por critérios antropométricos complementares ao IMC (circunferência da cintura, razão cintura-altura ou cintura-quadril). 2. Evidência de disfunção funcional ou limitação da vida diária – seja por alterações documentadas em exames, presença de sinais/sintomas clínicos (dispneia, dor musculoesquelética, fadiga) ou restrição na execução de atividades básicas (vestir-se, caminhar, alimentar-se). Alguns detalhamentos: indivíduos com IMC acima de 40 kg/m² podem ter o excesso de adiposidade presumido, sem necessidade de avaliação complementar. O IMC, no novo modelo, torna-se um parâmetro de triagem e vigilância populacional, e não mais critério isolado de diagnóstico. Implicações clínicas e terapêuticas da nova definição Com a incorporação dos critérios de funcionalidade e impacto clínico, os profissionais de saúde (médicos e nutricionistas, entre outros) passam a ter subsídios mais robustos para identificar precocemente os casos que demandam intervenção. A obesidade clínica é, portanto, uma condição que exige tratamento direto, independentemente da presença de doenças metabólicas associadas, como diabetes mellitus tipo 2 ou dislipidemia. Para os casos de obesidade pré-clínica, o foco recai sobre o monitoramento do estado geral, aconselhamento em saúde e, se necessário, intervenções preventivas personalizadas. Pacientes com obesidade clínica devem receber estratégias terapêuticas orientadas por diretrizes, que podem incluir mudanças comportamentais, farmacoterapia e, em casos selecionados, cirurgia bariátrica. Essa abordagem promove um cuidado mais equânime e baseado na real complexidade do paciente, e não apenas na presença de comorbidades clássicas. Obesidade clínica e obesidade metabolicamente não saudável O ponto principal é que o modelo tradicional frequentemente confunde obesidade clínica com obesidade metabolicamente não saudável. Dessa forma, o novo consenso estabelece uma distinção clara entre as duas condições. A obesidade clínica é caracterizada pela presença de sinais e sintomas de disfunção induzida pela adiposidade, mesmo na ausência de alterações laboratoriais relevantes. Por outro lado, a obesidade metabolicamente não saudável é uma subcategoria de risco cardiovascular, baseada em parâmetros bioquímicos (hiperglicemia, dislipidemia, hipertensão), porém não necessariamente indica disfunção funcional em outros sistemas. Com isso, o modelo clínico proposto amplia a detecção de casos importantes que não seriam reconhecidos apenas por critérios metabólicos, como pacientes com apneia obstrutiva do sono, osteoartrite, incontinência urinária ou limitação funcional severa. Consequências para políticas públicas e financiamento de tratamentos O reconhecimento da obesidade clínica como uma doença autônoma impacta diretamente as políticas de saúde, sobretudo em relação à cobertura de tratamentos e à priorização de recursos. Atualmente, muitas operadoras e sistemas públicos exigem a presença de comorbidades para indicar e custear intervenções, como a cirurgia bariátrica ou o uso de medicamentos antiobesidade. Com a nova definição, pacientes com disfunções clínicas secundárias à obesidade poderiam se beneficiar de tratamentos específicos, mesmo sem apresentar doenças metabólicas formalmente diagnosticadas. Isso pode ampliar o acesso e contribuir para a redução de complicações futuras, além de estimular políticas de prevenção mais eficazes, baseadas em evidência científica e não em critérios arbitrários. Próximos passos: implementação e desafios A adoção ampla do novo modelo proposto pelo consenso dependerá da articulação entre sociedades médicas, serviços de saúde e gestores públicos. A capacitação de equipes assistenciais para utilizar ferramentas diagnósticas mais precisas, bem como a atualização de protocolos clínicos e critérios de cobertura, será fundamental para operacionalizar a mudança. Além disso, o modelo contribui para combater o estigma associado à obesidade, ao reconhecer sua base multifatorial e seu impacto funcional, permitindo uma abordagem mais ética, centrada na funcionalidade e no bem-estar do paciente. Quer continuar se atualizando sobre as implicações metabólicas da obesidade? Sugerimos a leitura do conteúdo: Distúrbios metabólicos após a cirurgia bariátrica. Referências: Rubino F, Cummings DE, Eckel RH, Cohen RV, Wilding JPH, Brown WA, et al. Definition and diagnostic criteria of clinical obesity. Lancet Diabetes Endocrinol. 2025 Mar;13:221–262. doi:10.1016/S2213-8587(24)00316-4.