A trombose venosa profunda (TVP) e o tromboembolismo venoso (TEV) em crianças são considerados eventos raros, mas a incidência desses quadros tem aumentado significativamente nas últimas décadas. Esse crescimento pode ser atribuído a fatores como maior sobrevida de crianças com doenças crônicas, aumento do uso de dispositivos de acesso venoso central e aprimoramento dos métodos diagnósticos.
Diferentemente da população adulta, cujos fatores genéticos desempenham um papel importante no desenvolvimento da trombose, na pediatria, a maioria dos eventos trombóticos está associada a fatores adquiridos, como hospitalização prolongada, infecções graves e trauma ortopédico. No entanto, a identificação de subgrupos pediátricos com maior predisposição à trombose ainda é um desafio na prática clínica.
Neste conteúdo, trazemos informações relevantes sobre a incidência de trombose na população pediátrica, pontuando contextualizações importantes para a investigação de casos de trombofilia hereditária em crianças. Para a realização do artigo, contamos com a colaboração da Dra. Camila Mariano Rêgo, hematologista pediátrica e especialista em distúrbios da coagulação. Boa leitura!
Panorama da trombose pediátrica
O TEV na infância, embora menos comum do que na população adulta, tem sido cada vez mais reconhecido na prática clínica. Dados mostram que a incidência de TEV em crianças hospitalizadas é de 100 a 1000 vezes maior do que na população pediátrica geral. Esse aumento é impulsionado por uma combinação de fatores, incluindo:
- sobrevida prolongada de crianças com doenças crônicas, como câncer e cardiopatias congênitas;
- uso mais frequente de dispositivos de acesso venoso central, que estão associados a mais de 50% dos casos de TEV pediátrico;
- avanços nos métodos diagnósticos, que aumentam a detecção de eventos trombóticos que antes poderiam passar despercebidos.
Além disso, obesidade, infecções sistêmicas e imobilização prolongada são fatores de risco importantes para o desenvolvimento da trombose na infância.
Apesar de os avanços no diagnóstico e o manejo terem reduzido a morbidade associada ao TEV pediátrico, ainda existem lacunas no conhecimento sobre prevenção e estratificação de risco, especialmente para subgrupos pediátricos específicos. O impacto a longo prazo, como a síndrome pós-trombótica, continua sendo uma preocupação relevante.
Trombose venosa relacionada ao uso de cateter
Em ambiente hospitalar, o tromboembolismo venoso representa uma das principais causas de eventos adversos em pacientes internados, ficando atrás apenas das infecções associadas ao uso de cateteres.
Ainda que o tema seja amplamente estudado na população adulta, a ocorrência em crianças hospitalizadas têm chamado cada vez mais a atenção de especialistas, devido ao aumento da sobrevida de pacientes pediátricos críticos e à utilização frequente de cateteres venosos centrais, que se destacam como o principal fator de risco trombótico nessa faixa etária.
Ao contrário do que ocorre com adultos, em que fatores como neoplasias exercem papel substancial na formação de trombos, nas crianças, os eventos tromboembólicos estão mais associados a condições clínicas agudas, procedimentos invasivos e uso prolongado de dispositivos intravasculares, como cateteres.
O tromboembolismo pediátrico pode desencadear uma série de repercussões clínicas relevantes, como dor e edema no local da trombose, infecções secundárias, embolia pulmonar e até óbito. Uma complicação a longo prazo que merece destaque, mesmo sendo pouco reconhecida na prática clínica, é a síndrome pós-trombótica, caracterizada por alterações circulatórias crônicas que afetam a qualidade de vida da criança.
A identificação precoce de pacientes em risco de desenvolver tromboembolismo venoso é um desafio considerável na pediatria. Diversos estudos recentes têm buscado desenvolver modelos de risco clínico para esse público, visando à implementação de medidas profiláticas antes da ocorrência do evento. Entretanto, a baixa amostragem e a heterogeneidade dos dados disponíveis têm dificultado a criação de um escore amplamente aplicável.
A prevenção do TEV em crianças hospitalizadas pode ser realizada por meio de estratégias mecânicas, como a compressão pneumática ou o uso de meias elásticas, além da profilaxia farmacológica com anticoagulantes em doses ajustadas para a faixa etária. A decisão pelo uso dessas intervenções deve ser cuidadosamente avaliada, tendo em vista o risco-benefício em cada situação clínica. Em muitos casos, a complexidade do quadro clínico das crianças impede a aplicação de medidas padronizadas, o que reforça a importância de protocolos individualizados baseados em critérios objetivos de risco.
Trombose venosa profunda no trauma ortopédico
De forma distinta à trombose venosa associada ao uso de cateter, a trombose venosa profunda relacionada ao trauma ortopédico é uma complicação mais rara, porém potencialmente grave em crianças e adolescentes hospitalizados.
Um estudo realizado com 11.206 pacientes hospitalizados por trauma ortopédico identificou uma incidência de 0,84% de TVP. Entre os 94 casos diagnosticados, 8,5% não receberam anticoagulação, 43,6% foram tratados apenas durante a hospitalização e 47,9% mantiveram o tratamento no período ambulatorial. A maioria dos pacientes foi tratada com rivaroxabana, precedida pelo uso de heparina de baixo peso molecular.
Os dados mostraram que a anticoagulação prolongada após a alta esteve associada a melhores desfechos, com resolução do trombo em 91,1% dos casos contra 80,5% nos pacientes tratados apenas no hospital, sendo 37,5% os que não foram medicados. Esses resultados indicam que a manutenção do uso de anticoagulantes, mesmo por um período curto após a internação, pode ser benéfica para a recuperação desses pacientes.
Trombofilia hereditária: quando investigar em crianças?
Não obstante a pequena contribuição das trombofilias de origem genética na trombose pediátrica, ainda é importante estar ciente de critérios para investigá-las. A hemostasia no paciente pediátrico está em constante desenvolvimento, sendo necessário ter esse conhecimento ao investigar e manejar as crianças com trombose.
As proteínas S e antitrombina só atingem os mesmos valores de referência dos adultos aos seis meses de vida. A proteína C, por exemplo, pode continuar abaixo da normalidade definida para a população adulta até o paciente atingir a adolescência.
Nesse contexto, existem três principais motivos para a investigação de trombofilia hereditária nas crianças com TEV, conforme veremos abaixo. Mas vale ressaltar que não existem estudos consistentes sobre o assunto para afirmar ou negar as decisões a seguir, e os dados são referentes a eventos venosos.
Associação entre trombofilia hereditária e TEV em crianças
A realização de testes para trombofilia hereditária em crianças que apresentam um evento trombótico sem causa aparente poderia contribuir para a elucidação da fisiopatologia do TEV pediátrico.
Alguns estudos demonstram que adolescentes e crianças com história familiar de trombose podem ter um risco aumentado para eventos trombóticos, mesmo sem fatores de risco identificáveis. Assim, a identificação dessas alterações genéticas poderia ajudar na compreensão dos mecanismos subjacentes à trombose infantil.
Por outro lado, a grande maioria das crianças que desenvolvem TEV apresenta fatores de risco adquiridos bem estabelecidos, como cateter venoso central, infecção ou imobilização prolongada. Dessa forma, a presença isolada de trombofilia hereditária raramente é suficiente para causar um evento trombótico na infância.
Adicionalmente, a literatura atual não demonstra uma associação consistente entre trombofilia hereditária e TEV em todos os casos pediátricos, como aqueles relacionados ao uso de cateteres venosos. Portanto, o impacto clínico da detecção dessas mutações em crianças ainda é incerto.
Manejo da trombose no paciente pediátrico
A identificação de trombofilia hereditária poderia ter implicações na prevenção de novos episódios de TEV em crianças que já tiveram um evento trombótico. O diagnóstico de determinadas condições trombofílicas, como deficiência de antitrombina, poderia justificar a necessidade de profilaxia trombótica em situações de alto risco, reduzindo a chance de recorrência do TEV.
Contudo, a decisão sobre anticoagulação profilática em crianças com histórico prévio de TEV deve ser baseada no contexto clínico e na exposição a fatores de risco adquiridos, independentemente da presença de trombofilia hereditária. A eficácia das estratégias de profilaxia trombótica na população pediátrica ainda não foi comprovada de forma robusta, o que levanta questionamentos sobre a real necessidade de realizar testes genéticos para guiar essa conduta.
Identificação de familiares assintomáticos com trombofilia hereditária
A testagem de familiares assintomáticos para trombofilia hereditária poderia trazer benefícios em termos de prevenção e conduta clínica. Indivíduos com diagnóstico prévio poderiam procurar atendimento médico mais rapidamente, caso apresentassem sinais e sintomas sugestivos de TEV. O procedimento também permitiria evitar fatores de risco adicionais, como obesidade e tabagismo, possibilitando a adoção de medidas preventivas específicas, como a anticoagulação profilática em situações de alto risco, principalmente para aqueles com deficiência de antitrombina.
Muitas das medidas preventivas recomendadas podem ser aplicadas sem a necessidade de um diagnóstico laboratorial de trombofilia. Como a maioria dos episódios de TEV em crianças e adolescentes é provocada por fatores adquiridos, a tromboprofilaxia em situações de alto risco seria suficiente, sem depender do diagnóstico genético. Outro ponto a considerar é a possibilidade de gerar uma falsa sensação de segurança nos casos em que os testes resultam negativos, levando à negligência de fatores de risco adquiridos.
Há também implicações emocionais e financeiras na realização desses exames. O diagnóstico laboratorial de trombofilia pode gerar estresse e ansiedade desnecessários para os familiares, além de impactar o custo de planos e seguros de saúde, pois a trombofilia pode ser considerada uma condição pré-existente.
A trombose na infância tem se tornado uma preocupação crescente na prática médica, exigindo uma abordagem cuidadosa para diagnóstico, tratamento e prevenção. Embora os fatores de risco adquiridos sejam predominantes na etiologia do TEV pediátrico, a avaliação de casos específicos de trombofilia hereditária pode ser útil em algumas situações.
O avanço nas estratégias terapêuticas, como a anticoagulação personalizada e protocolos mais curtos de tratamento, pode contribuir para melhores desfechos clínicos e menor risco de complicações. Para mais informações sobre avaliação laboratorial da hemostasia, acesse o conteúdo: “Avaliação laboratorial da hemostasia na prática médica”.
Referências:
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